Traduzir pulsações e palpitações da poesia: mágica, suor, alemão, português e espanhol

O livro Nosso amor de trincheira, nosso trânsito de fronteira é, ao traduzir para o português do Brasil poemas da premiada poeta, tradutora e professora alemã Uljana Wolf, um trabalho pulsante e palpitante de tradução poética


Por Letícia Lopes Ferreira

Quando pensamos estar mais seguros, estamos mais enganados – é nessa tensão que mora a poesia da alemã Uljana Wolf, que acaba de lançar o primeiro livro no Brasil: Nosso amor de trincheira, nosso trânsito de fronteira, pela Editora Moinhos, com apoio do Instituto Goethe do Paraná.

Como tradutora – sim, sou tradutora, hoje tenho coragem de dizer isso, embora ainda com a famosa síndrome do impostor a sussurrar “não” – de um livro publicado e outro a caminho, sempre fico emocionada quando vejo um trabalho de tradução que busca com afinco reproduzir não apenas o texto, mas sua emoção. Ou “pulsación” ou “palpitación”, como disse Julio Cortázar (Clases de Literatura, Berkeley, 1980, Debosillo). E o livro Nosso amor de trincheira, nosso trânsito de fronteira, lançado recentemente pela Editora Moinhos, com apoio do Instituto Goethe do Paraná, é, ao traduzir para o português do Brasil poemas da premiada poeta, tradutora (polonês e inglês para alemão) e professora alemã Uljana Wolf, um trabalho pulsante e palpitante de tradução poética. De uma poesia que é justamente sobre tensões, encontros e mal-entendidos entre línguas. Quem consegue traduzir poesia sobre tensões entre diferentes línguas, é, ele mesmo, um poeta, um artista. E ele é eles, os dois organizadores do livro, o professor da Universidade Federal do Paraná Guilherme Gontijo Flores e o músico e fotógrafo argentino, radicado em Curitiba, Ricardo Pozzo. Nenhum dos dois germanistas, que contaram com o auxílio dos especialistas Daniel Martineschen e Norma Müller.

A poesia de Uljana (me permitam chamá-la pelo primeiro nome) é experimental, irônica e referencial. Nasce do desencontro para chegar ao significado, mergulhando na tradução, ainda no original, como caminho de entendimento e tensão poética. Um dos poemas da antologia que a traz ao Brasil se chama justamente “traduzir” (übersetzen), do primeiro livro de Uljana, kochanie ich habe brot gekauft (kochanie eu comprei pão), de 2005, premiado duas vezes:

“traduzir

meu caro: esse é nosso amor de trincheira nosso trânsito de fronteira acidentado sob as línguas nossa oração sussurrada e agora me afaga nesta almofada de carimbo até chegar a alfândega

meu caro: ou podemos traficar plenas papilas gustativas gazeta wyborcza e cunhar moedas na fugaz cavidade bucal lotada em hora de pique.”

É de uma série de poemas que se referem ao Círculo de Kreisau, nome que os nazistas deram a um grupo de alemães que se refugiaram em uma propriedade na cidade de Kreisau, na Silésia, hoje Polônia, durante a ocupação nazista da Alemanha. Foi um grupo que lutou contra o totalitarismo nazista e pretendia restaurar a democracia alemã. “Traduzir estes poemas é, em parte, deslocar suas relações linguísticas e políticas, mas assim é que se traduz: deslocando relações, e não propriamente frases. Portanto mantivemos os vínculos com a Polônia e abrasileiramos o alemão, fazendo assim uma espécie de vínculo curioso que pode se abrir nesta Curitiba polaca em que vivemos”, diz Flores no prefácio.

Ele contou que o maior desafio foi recriar o efeito dos poemas extraídos principalmente do livro falsche freunde (falsos amigos, de 2009), em que Uljana usa falsos cognatos (palavras de diferentes línguas, que se assemelham na forma ou no som, mas têm outros significados) entre inglês e alemão. Para recriar esse efeito, os tradutores decidiram usar duas outras línguas próximas, o português brasileiro e o espanhol, e seus falsos cognatos. A isso, Flores chamou de “experimento poético deliberado de recriação”. Mas toda tradução não é um experimento deliberado, se não poético, de recriação?

Veja um exemplo dos poemas de falsos amigos:

“gracioso – grasa

no princípio a grasa. ou pra empezar, com arte alta, ou silenciosa: escucha quando empiezan las beguinas, e quando é isso. e quem diz a não quem diz b, deve estar com lábios certos (dentições só algo mais tarde): era falar então a arte de quedar solo, além do silêncio, do marco, sempre esquisito, gracioso como a penas um.”

Só o título, falsos amigos, já evoca tanto. O que é uma falsa amizade, se não aquilo em que nos sentimos seguros, sem estarmos; e o que é um falso cognato se não aquilo que temos certeza de que conhecemos, mas estamos completamente enganados? Quando pensamos estar mais seguros, estamos mais enganados. É nessa tensão que mora a poesia de Uljana.

Na série de poemas “Aliens”, os organizadores mantiveram “a relação alemão-inglês como português-inglês para reforçar as relações políticas de migração, que são ainda mais violentas quando se estabelecem entre um país mais rico e outro mais pobre”.

“Alien I: Uma Ilha

Também na Ilha de Ellis o destino tinha a forma de um alfabeto. Agentes de saúde investigavam rápida e velozmente os recém-chegados e naqueles que considerassem suspeitos eles marcavam com giz algumas letras sobre seus ombros, para indicar alguma doença ou deficiência que supunham ter identificado

— George Perec e Robert Bohr

X Suspected mental defect

x marks the spot? e como! nós, transferidos sozinhos por um ser-aqui insano, ao lugar no topo da escada íngreme, em seis segundos tudo se revela: somos o próprio lugar. ilhas fétidas. enrolados em lenços, onda doente na carne, imbecis, lábeis, na melhor hipótese despidos pelo vento. uma folha tremendo entre os dentes, nome, passagem, o mapa da mina. autoexumados, autotrazidos. na sala de bagagens: só de olhar os embrulhos, já sei tudo. o nó trai o atador, sua mão trêmula.”

Por fim, foram coletados alguns poemas do mais recente livro de Uljana, meine schönste lengevitch (meu lindo lenguache, de 2013), como este:

“DISCURSO SOBRE O DESAPARECER

amanhã cedo vou aos pedreiros andaimados, digo: vocês não são os intérpretes da chanceler cuja função é se transformar num nada aspirado? vejam só: vento oeste adentro, assobio afora, já brilha a casa por detrás das redes, caiada por outros, é claro. porque aguenta, sim, aguenta. logo as redes estão enroladas, desatadas, um caminhão está pronto para chacoalhar noutros números. o cavalinho corcunda (lenda russ.) não era dela? ah, andaimnik, fique aqui. que eu aprendo a sussurrar o joguinho das cadeiras, quem quer me declinar essa ponte? cabeça erguida, a tua ainda está aí. outros querem se lavar por dias a fio.”

Traduzir pulsações e palpitações
Para Ricardo Pozzo, Uljana Wolf se apropria do que Ludwig Wittgenstein (1889-1951), filósofo da linguagem, descreveu em seu conceito de jogos de linguagem, transformando isso em algo mais radical. E a autora faz isso talvez pelas experiências que viveu de diluição do significado da linguagem, em suas mudanças de continente. Somente uma tradução pulsante e palpitante poderia trazer esses jogos de linguagem radicalizados para o Brasil.

Uma vez, para me inspirar em uma das minhas traduções, um amigo me mostrou o que Cortázar disse sobre as traduções dos próprios contos. Para Cortázar, algumas dessas traduções estavam impecáveis, ou seja, “estava tudo lá”, mas não eram os contos como ele os tinha vivido e escrito em espanhol, porque faltava aquela pulsação, aquela palpitação que o leitor pode sentir. Mas aí é que está. Nem todo leitor pode sentir a pulsação e a palpitação, e nem todo o leitor sente a pulsação e a palpitação da mesma forma que as sentiu o escritor. E o tradutor é, antes, um leitor. Além disso, o que se lê em uma língua materna pode pulsar igual ao que se lê em uma língua adquirida depois? Ou o que se lê na língua original em que foi escrito pode pulsar da mesma forma em outra língua? Sempre?

Segundo Cortázar, o tradutor precisa deixar fluir, por cima e por baixo da inteligência, “as grandes pulsações do sangue, da carne e da natureza”. Ou “aquela aura, aquela luz, aquele som profundo que não se ouve exatamente, mas vem de dentro”. Que tal? Tarefa nada fácil, talvez um pouco mágica, talvez muito suada, e só posso me solidarizar com os tradutores de Cortázar e cumprimentar os tradutores de Uljana Wolf, organizadores de Nosso amor de trincheira, nosso trânsito de fronteira.

 

 

Letícia Lopes Ferreira é jornalista, mestre em Letras e ama livros e filmes.

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