Livre-se: O rabo da sereia

Hoje, nossa colunista Letícia Lopes Ferreira dá uma pausa nas críticas literárias para mostrar sua veia de escritora. Boa leitura!


O rabo da sereia
Por Letícia Lopes Ferreira

Ela tinha me seduzido com o sorriso de reclame e o arranjo de flores nos cabelos muito claros de princesa ucraniana. A sereia de rabo verde. Mais do que a capa dura e alegrinha, o título, A Sereiazinha – e outras histórias bonitas, era uma mentira deslavada. Ao terminar a última e catastrófica página da história e colocar o livro sobre a mesinha de centro, lancei um olhar chocado para minha mãe, do outro lado da sala. Coitada, ela nem desconfiava que na minha escola, davam terror disfarçado de livro infantil para as crianças. Mas eu não ia dizer nada, porque era o primeiro livro de verdade que eu lia, que eu mesma tinha escolhido entre os livros oferecidos por uma moça, na biblioteca da escola, aos alunos do segundo ano primário. E porque eu mal podia esperar para ler outras histórias como aquela.

Até então, Luluzinhas, Mônicas e Cebolinhas eram a minha ração literária, que eu consumia até altas horas, mesmo depois que meu pai espinafrava, gritando para que eu fosse dormir. Eu aproveitava a réstia de luz que vinha correndo do corredor e caía bem no meu travesseiro. E agora eu tomava conhecimento daquela sereiazinha que tinha feito um tão mau negócio. Ao se apaixonar por um príncipe, ela deixou tudo para trás e abriu mão do próprio lindo rabo por duas insípidas pernas e se transformou em uma pessoa. Além de sofrer dores excruciantes – (nunca esqueci dessa palavra) nas pernas, ela não conquistou o amor do príncipe e, por isso, não apenas não pôde voltar a ser sereia, mas morreu de forma horrível, virando espuma do mar. Se fecho os olhos, vejo a ilustração da última página da história, a carinha dela, desesperada, no meio do corpo já derretido em espuma. Mas não aprendi a lição. Ou melhor, desaprendi, lendo outros livros que diziam o contrário da história da sereiazinha. Que diziam que a gente tem, sim, que mudar, que se transformar em outra criatura, que deixar de ser o que a gente é para conquistar o amor ou seja lá o que for que a gente ache que precise para viver ou sobreviver. Livros que me disseram que eram livros sagrados. Livros sábios. Irrefutáveis.

Conforme eu ia descendo a escada do tempo, sentindo dores excruciantes nos lugares em que tinha me mutilado para me transformar na pessoa (e na pessoa certa) para ser amada pelo príncipe, ia esbarrando em outros livros e em criaturas que não se tinham deixando mutilar – criaturas que eram metade humanas e metade peixe, metade pássaro, metade gato, metade outros animais, algumas que me faziam bem e outras que me faziam mal, mas todas maravilhosas. E acabei por descobrir que a palavra escrita não era sagrada. E que eu podia amar qualquer livro que eu quisesse, especialmente os bem grandes, que eu já amava, que duravam vários dias, nos quais era possível boiar como no mar, de barriga pra cima, brincando que de repente vem o tubarão e pega a gente por baixo ou a onda e pega a gente por cima. E que não existe livro sagrado. Sagrado é o meu corpo. Sagrado é o meu coração. Sagrado é o meu rabo.

 

Letícia Lopes Ferreira é jornalista, mestre em Letras e ama livros e filmes.

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