Hoje, apresento três notas sobre alguns dos desafios a serem enfrentados nesta pandemia, no que diz respeito a educação, caso queiramos garantir o direito de todas as crianças e jovens à escola
Por Rudá Morais Gandin
Neste texto, escrito com base nas minhas preocupações em torno da vida de crianças e jovens que se veem rendidos diante o avanço do desemprego e a morte de conhecidos, amigos e familiares, apresento três notas sobre a escola, que me surgiram no decorrer desse cenário de profunda tristeza que atravessamos sem perspectivas de melhora – ao menos num curto período de tempo, uma vez que se aguarda uma vacina eficaz contra a covid-19 no fim deste ano ou começo do ano que vem.
A primeira, das três anotações que registrei sobre a escola, diz respeito a sua falta de sentido num contexto em que o aprendizado não é mais a sua principal inquietação. Com a deterioração das relações de ensino-aprendizagem, devido à ausência de acompanhamento das eventuais dúvidas, dificuldades, acertos e erros dos alunos, a finalidade da escola não se parece mais a mesma. Ao que tudo indica, suas preocupações se encontram na produção inesgotável de atividades, igualmente a uma fábrica de carro ou sapatos, em que concentram seus esforços na fabricação de números cada vez mais elevados, de forma padronizada e mecânica. Com essa pandemia, na ânsia de “mostrar trabalho”, as escolas largaram mão de seu compromisso histórico, o de ensinar, para atender a uma demanda pelos conteúdos, reclamada por pais e políticos, como se isso assegurasse o aprendizado e o sentido da escola nesse período.
O segundo registro que fiz, mais ou menos por volta do mês de maio, refere-se ao “descortinamento” das relações pouco fecundas entre família e escola, que esse triste momento acabou revelando. Se o conhecimento, por um lado, dos locais onde os alunos vivem e as condições materiais das quais desfrutam é novidade para muitos professores, por outro, o conhecimento sobre a sala de aula e as condições materiais em que a escola funciona é identicamente novo para muitas famílias. Desse modo, eu diria que um não conhece o outro, senão nos momentos em que são obrigados a se encontrarem, que é, quase sempre, no resultado das avaliações no fim do bimestre, trimestre ou semestre. Com a pandemia ficou mais evidente que os professores ou a maioria dos professores não conhecem seus alunos, como também ficou visível que boa parte das famílias desconhecem as condições nas quais estudam seus próprios filhos. Então, como construir uma escola, sobretudo agora em que a vida é colocada à prova, se família e professores, pedagogos e demais trabalhadores da educação parecem tão distantes de quem pretendem ensinar?
Meu último registro sobre a escola em tempos de pandemia trata-se da reflexão a respeito do discurso a favor de uma escola “conectada”, a qual levaria os alunos a realizar atividades on-line com a mesma similaridade das aulas presenciais. Sobre isso, pergunto-me, antes de qualquer coisa, se todos os alunos terão as mesmas condições de acompanhar as aulas no formato on-line e se todos terão computadores capazes de acessá-las. Além disso, fico a imaginar a forma de relação que se estabeleceria ou que se tem estabelecido entre professores e alunos num formato como esse, primeiramente porque é excludente, ou seja, participa apenas quem usufrui de condições materiais para isso, segundamente porque coloca na conta do aluno toda a responsabilidade pelo aprendizado, uma vez que o professor ocuparia apenas o papel de facilitador, expondo aos alunos os conteúdos a serem assimilados, isso é, o professor seria um expositor e não quem busca, de fato, ensinar.
Antes de encerrar este texto, gostaria de chamar a atenção para o avanço das articulações que buscam retomar, de modo precipitado, as atividades escolares no país. Os últimos números divulgados sobre a pandemia apontam que ela está longe de acabar no Brasil, não à toa que os casos de contágio pelo vírus são assustadoramente enormes, o que leva a suspeitarmos que só uma vacina seria capaz de garantir a segurança do retorno das aulas. Todavia, parece-me que dizer isso não basta, dado que são inúmeras as manifestações pedindo a flexibilização das regras de distanciamento social. Portanto, o argumento a ser utilizado, a fim de que não se abram as escolas, deve ser também de caráter pedagógico. Desse ponto vista é imprescindível a pergunta em relação a qualidade do aprendizado dos alunos num contexto em que os professores atuaram mais nos cuidados com a higiene do que com os conteúdos escolares. Ademais, como pode haver aprendizado num lugar onde a vida se encontra fragilizada e as atenções estarão centradas em evitar a proliferação do vírus? Na minha opinião, a escola é o lugar ou deveria ser o lugar em que se festeja a vida e as descobertas de cada criança e jovem em relação ao que se produz e aprende de conhecimento na escola, talvez por isso a minha dificuldade em escrever e pensá-la diante de tantas mortes sendo anunciadas.
As notas que apresentei nesse texto mostram alguns dos desafios a serem enfrentados nesta pandemia, no que diz respeito a educação, caso queiramos garantir o direito de todas as crianças e jovens à escola. Desse modo, não é porque estamos vivendo um período incomum, tristemente incomum, que devemos tratar a escola com remendos e o trabalho de alunos e professores com pouco caso. Para tanto, penso eu que a primeira coisa a ser feita é não permitir que a escola deixe de ensinar, pois se ela não ensina, deixa, por óbvio, de constituir-se enquanto escola. E se num período como este é impossível ensinar, ao menos os conteúdos escolares, que canalizemos nossas forças em ensinar a respeitar a vida e o próximo, o que também é objetivo da escola. Deixemos as excessivas produções de atividades contendo infinitos conteúdos de lado, portanto.
Rudá Morais Gandin é mestrando em Educação da PUCPR. Pedagogo e especialista em Políticas Educacionais pela UFPR. Atuou como professor de Educação Infantil na cidade de Curitiba