Catarina Burzynski: “Doutor, eu quero viver”

Mãe, avó, bisavó, amiga, esposa, benzedeira, professora e uma mulher à frente de seu tempo, Catarina Burzynski se dividia em diversas atividades e não perdia a vontade de viver mesmo em meio a dificuldades

Alexandra F. M. Ribeiro e Alboni. M. D. P. Vieira
Catarina Burzynski nasceu no dia 30 de novembro de 1936, em Dorizon, distrito de Mallet, uma pequena cidade do interior do Paraná. Sua mãe, Maria Novicki, era descendente de ucranianos, nascida na Áustria, e veio para o Brasil aos 12 anos de idade, numa viagem de navio que durou 45 dias. Seu pai, Miguel Novicki, era descendente de poloneses, mas nascido no Brasil.
Catarina era a quinta filha de 12 irmãos. Ela e sua família viveram um período de muitas provações e dificuldades. No local onde moravam, chamado de vicinal, além de ser muito longe da vila, não existia energia elétrica e a água era somente de poços ou rios. O simples ato de ir ao banheiro transformava-se em uma verdadeira aventura, principalmente à noite, uma vez que as “privadas” ficavam longe da casa. As roupas de tecido barato, que ela e seus irmãos usavam, eram feitas pela mãe Maria. A agricultura de subsistência que praticavam, sem nenhuma mecanização, exigia trabalho manual, seja no preparo da terra ou no cuidado e na colheita dos alimentos, tendo no máximo cavalos que ajudavam no transporte dos alimentos até onde eram guardados. Catarina contava sobre as dificuldades que se tinha em se obter coisas simples, seja pela distância em que ficava o pequeno centro de compras, seja pela falta de dinheiro e de ser adolescente e depois mulher adulta e não ter ao menos itens básicos para o conforto feminino. As vivências de Catarina foram repassadas para seus filhos e netos por meio de suas narrações.
Entre seus 11 e 12 anos, Catarina foi morar com uma parente na cidade de Mallet, distante pelo menos 15 quilômetros da residência de seus pais. Durante a semana, ela estudava pela manhã e ajudava nas tarefas de casa e na roça no período da tarde. No sábado, ela retornava para a casa dos pais para passar o fim de semana. Catarina contava sobre o medo que sentia, principalmente quando se afastava da vila e estava a uma boa distância para chegar, já que era apenas mato nos dois lados da estrada de chão, que em um determinado local havia um assustador bando de bugios e que quando escutava barulho de algum dos poucos carros que havia na localidade, escondia-se no matagal até o automóvel distanciar-se. Apesar de seu temor, Catarina contava admirada que naquele período não havia a preocupação, tanto de seus pais, como de sua parente, se ela havia chegado a seu destino.
Catarina casou-se em 04 de julho de 1959, com Boleslau Burzynski, de origem polonesa, que largou os estudos muito cedo devido ao trabalho na lavoura. Da união entre Catarina e Boleslau nasceram oito filhos – José, Ernani, Távio, Alfredo, Oscar, Carlos, Lindamir e Lúcia – dos quais apenas um faleceu prematuramente (José), antes mesmo do nascimento. Catarina, além de ser professora primária, trabalhar na lavoura e cuidar da prole, ainda fazia costuras para as irmãs e lavava roupas para fora para ajudar no sustento da família, que não era pequena. Ela sempre mencionava que a vida na lavoura não era fácil e que para poder dar conta de todo o serviço, era obrigada e levar o filho menor, Ernani, em um cesto de palha e deixá-lo junto ao capinzal enquanto ajudava o marido com a plantação. A plantação, em sua maior parte para a própria subsistência, nunca foi o suficiente para terem uma vida de luxo ou regalias.
Seus dias se dividiam entre as aulas que ministrava, primeiro em escolas rurais e depois no grupo escolar da cidade, bem como o trabalho na lavoura e o cuidado com os filhos. Ela caminhava mais de 5 quilômetros todos os dias para poder chegar à escola e o caminho era de tempos em tempos roçado pelo esposo para que as roupas de Catarina não ficassem molhadas pelo orvalho das plantas. Na escola, devido à falta de professores e de mais salas de aula, Catarina lecionava para as crianças de todas as idades, distribuídas entre os níveis de 1ª a 4ª série, na mesma classe. Anos mais tarde, para sua filha Lúcia, Catarina relatou: “No interior, a professora era zeladora, merendeira, enfermeira, catequista e tudo mais. Ainda andava a pé todo mês, nos invernões, mais ou menos 10 quilômetros e nas férias fazia cursos em Irati, Mallet e União da Vitória”. Além das atividades na escola, a filha Lúcia conta que a mãe Catarina sempre relatava sobre levar os cadernos das crianças para corrigir as lições em casa e que fazia isso à noite, com a ajuda de um lampião.
Por volta de 1964, Catarina e o marido compraram um terreno em Curitiba. Mas, no período, Catarina recebeu sua transferência, do cargo de professora, para uma escola muito distante do local onde haviam comprado o terreno, por esse motivo a mudança para capital foi inviabilizada. Entretanto, em 1976, em um ato de muita coragem, venderam a propriedade que tinham em Dorizon e, com seus filhos todos pequenos, mudaram-se para Curitiba. Catarina se preocupava com a mudança, estava insegura com o desconhecido e temia arriscar a segurança da cidade pequena por uma vida incerta com seus numerosos e pequenos filhos na capital. O esposo contou que Catarina lhe disse: “Eu não quero ir, porque como eu, uma simples mulher do interior, vou chegar a uma cidade grande, no meio de tantas mulheres grã-finas e me misturar a elas?”. O ultimato do marido para que o deslocamento acontecesse a fez desgarrar-se de suas incertezas.
Na capital, Catarina e Boleslau precisaram desdobrar-se para garantir o sustento dos sete filhos, sendo a mais nova Lúcia, um bebê de apenas quatro meses. Os filhos de Catarina que se encontravam aptos para o trabalho, realizavam atividades esporádicas – cortar grama e limpeza de jardins – para contribuir com as despesas da casa e os demais auxiliavam no cuidado com os irmãos mais novos e afazeres domésticos. A filha Lúcia conta que tanto Catarina como seu marido Boleslau, em meio a tantas dificuldades, sempre ensinaram aos filhos que jamais deveriam pedir algo a alguém que não fosse trabalho.
A alimentação para as nove pessoas da família de Catarina é motivo de rememoração à filha Lúcia. A casa estava sempre cheia e a comida era feita em panelões, as compras de mercado proporcionavam carrinhos cheios de sacos de farinha, arroz, açúcar, entre outros alimentos, obviamente sempre se optando pelo mais necessário. O dia de fazer o pão rendia fornadas generosas para abastecer semanalmente aquela turma. Lúcia exclama: “Ainda dá para lembrar do cheirinho de broa fresquinha saindo do forno à lenha” (BURZYNSKI, 2021). Os demais filhos de Catarina recordam que apesar dos diversos trabalhos e preocupações, a mãe sempre achava tempo e disposição para deixar as datas festivas mais animadas, com o preparo da cerveja e bolachas caseiras, entre outras guloseimas que ela mesma fazia.
Catarina preocupava-se com a formação de seus filhos. Era assídua nas visitas aos presépios montados em épocas de Natal na cidade e aos pontos turísticos, fazendo questão de ensinar aos filhos os nomes de praças e ruas sempre que ia ao centro da cidade. Também mantinha preservados alguns costumes de sua etnia ucraniana, como a bênção de alimentos na Páscoa, tradição repassada de geração a geração. Catarina priorizava a educação institucional de seus filhos e os estimulava a fazer cursos de formação em datilografia, cursos técnicos, corte e costura para as meninas, entre outros, sendo presente na vida estudantil de todos. Como motivadora que foi, viu seus filhos todos formados e bem encaminhados e, como professora, serviu de exemplo, haja vista quase todos, atuando ou não, também serem professores.
Catarina lecionava na Escola Emiliano Perneta, no bairro Pilarzinho, quando completou o tempo de serviço como professora para aposentar-se. Foi necessário procurar os cursos de formação que havia feito e que lhe renderam certificados de aperfeiçoamento para o exercício do magistério para comprovar os anos de profissão, uma vez que no início de sua vida profissional não existiam os holerites ou contracheques como hoje são chamados.
Aposentada, Catarina confidenciou a um dos filhos que tinha desanimado ao entrar na terceira idade, mas que teve sua vida revigorada após realizar a façanha de ir passear de avião de Curitiba ao Rio de Janeiro, coisa que nunca imaginou que faria na vida. A viagem lhe foi proporcionada por um de seus filhos com o intuito de visitar uma tia dela que lá residia e que há muito tempo não via. Chegando lá, deparou-se com aquela senhora com seus mais de 80 anos administrando uma empresa de caminhões pipas e caçambas para o recolhimento de entulhos. Ela percebeu, naquele momento, que tinha muito que viver pela frente e suas forças novamente se renovaram.
Um pouco de suas energias foi destinado aos cuidados com os sete netos e um bisneto. Conta a filha Lúcia que Catarina foi uma avó dedicada, carinhosa e zelosa para com seus netos. Esperava seus filhos e netos em suas visitas com pierogis, aqueles famosos pastéis que, apertadinhos pelas suas mãos, tomavam forma e serviam não só como alimento, mas preenchiam a alma daqueles que a visitavam. Seu famoso borsch, sopa vermelha pela beterraba e de gosto azedo pelo vinagre, também era muito apreciado pela família. Dentre suas preocupações como matriarca também estava encaminhar sua prole na fé.
A religiosidade era uma forte característica de Catarina. Na cidade de Dorizon, Catarina atuou como catequista. Em Curitiba, as idas dominicais à igreja eram sagradas e os outros dias da semana eram complementados com novenas: nas segundas-feiras, na capela Nossa Senhora do Pilar; e nas quartas, a novena de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, na igreja São Marcos, ambas paróquias pertencentes à comunidade do bairro Pilarzinho. Quando queria alcançar uma graça, fosse para ela mesma, para os filhos, para os netos ou para qualquer pessoa a quem tivesse apreço, ela fazia promessas ao Sagrado Coração de Jesus e, quando o pedido se realizava, acabava envolvendo até mesmo os filhos no pagamento da promessa, que se resumia em propagar a novena ao distribuir os livrinhos. Catarina declarava que nenhuma graça havia deixado de ser alcançada com suas orações.
Catarina também acreditava no poder de cura dos benzimentos. Assim como sua mãe Maria, que era famosa onde morava pelos seus benzimentos, ela também era procurada pela vizinhança, que trazia os filhos pequenos para que ela os benzesse, ou mesmo pelos netos, que acreditavam no poder de bênção da baba, que significa avó em ucraniano e que era carinhosamente como eles a chamavam. Uma de suas filhas relembra que mesmo já não sendo mais criança, ainda achava bonito quando a mãe fazia “costura” para melhorar uma dor nas costas, que ela acreditava que poderia ser uma “rasgadura”, como o problema popularmente é conhecido. Sua filha Lúcia considera que talvez a vontade da mãe Catarina em ver todos bem de saúde a levava a acreditar e ver muitas vezes dar certo o benzimento.
Muito comunicativa, mantinha um ciclo de amizades mesmo na velhice. Seu telefone fixo tocava muito e apesar de não aderir às modernidades de celular e computador, mantinha-se conectada às pessoas. O bingo, no qual ela não era apenas uma frequentadora, mas também uma organizadora, dava o tom dos encontros entre Catarina e as amigas. Alguns dias que antecediam todo primeiro sábado do mês, começavam os preparativos para as rodadas de bingo. Toda a família era envolvida no evento, quer fosse para ir à compra dos prêmios, das cartelas, para carimbar e organizar os kits, levar as prendas e organizar o local. Apesar da idade já avançada, seus filhos entendem que era essa a motivação que a mantinha cheia de vigor e energia, pois as dores da idade ficavam em segundo plano.
De acordo com seus filhos, Catarina foi uma mulher à frente de seu tempo, que não se conformava com a dor e acreditava na medicina como forma de viver melhor a vida. Aos 80 anos, após sofrer uma parada cardíaca e precisar de um marca-passo para viver, quando questionada pelo médico se queria mesmo encarar a cirurgia, a resposta veio prontamente: “Doutor, eu quero viver”. Catarina contava brincando que além do marca-passo, ainda vivia com duas próteses no joelho – ambas também realizadas após os seus 80 anos de idade – e que se precisasse de mais alguma cirurgia ela ainda teria coragem de enfrentar, porque queria ver os netos crescerem. Catarina faleceu aos 84 anos, em 29 de março de 2021, sendo diagnosticada com inúmeros coágulos intestinais sem causa definida.
Catarina era dona de um carisma e de um sorriso largo e tinha sempre um comentário e uma opinião formada sobre as pessoas e os valores da vida. Orgulhava-se quando em alguma festa religiosa ou eventos públicos encontrava alguns de seus alunos, que faziam questão de dizer: “Ela foi minha professora”, a quem ela respondia com um abraço apertado, mesmo muitas vezes nem reconhecendo quem era. Para sua filha Lúcia, a mãe Catarina “sempre foi tudo isso: mãe, amiga, irmã, esposa, professora e mulher batalhadora. Mesmo com todas as dificuldades que teve em sua vida, foi exemplo de força e alegria de viver” (BURZYNSKI, 2021).
Agradecimentos
As informações deste texto foram concedidas pelos filhos Ernani, Távio, Alfredo, Oscar, Carlos, Lindamir e Lúcia às autoras Alexandra Ribeiro e Alboni Vieira, a quem os filhos agradecem por esta linda homenagem a essa Mulher Paranaense a quem eles têm a honra e o orgulho de chamarem de “Mãe”!


Alexandra F. M. Ribeiro é doutoranda e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais e Alboni. M. D. P. Vieira é doutora e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais.
 

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