Solda, Rafael Greca, Dante Mendonça eram alguns dos ilustres que participavam da festa popular
Carlos Mariano Filho
Há exatamente cinquenta anos, o carnaval de Curitiba teve um marco importante na sua história. Em 1971, os festejos de Momo deixaram de ser realizados na Rua XV de Novembro e foram para a Avenida Marechal Deodoro da Fonseca.
Essa mudança do espaço público dos rituais carnavalescos curitibanos não está desassociada da própria história da cidade. Isso porque a Rua XV de Novembro na década de 1970 sofre uma intervenção urbanística liderada pelo prefeito de Curitiba da época, o arquiteto que faleceu recentemente, Jaime Lerner, que a transforma na primeira rua de pedestre do Brasil, inviabilizando-a para os cortejos de Momo.
A década de 1970 também marcará a afirmação e o início do apogeu de sucesso e popularidade do carnaval curitibano, com crescimento do número de agremiações carnavalescas e o interesse do público pela festa.
No que tange ao carnaval brincante dos blocos de rua de Curitiba, destacam-se, nesse período, duas agremiações emblemáticas: a Banda Polaca, criada em 1970, pelos foliões Dante Mendonça (hoje, jornalista e escritor reconhecido) e Rafael Greca (atual prefeito de Curitiba) e o bloco Afoxé, criado em 1979 pelo ogã Glauco Souza e pelo babalorixá José Francisco Pereira.
As duas agremiações representavam bem a adversidade cultural do carnaval curitibano e a disputa entre os diversos estilos de carnaval pela hegemonia e presença nas ruas no período de Momo.
A Banda Polaca foi criada por jovens de classe média, que tinha como objetivo carnavalesco subverter a ordem social por meio do riso e da anarquia boêmia. Suas performances começavam na porta do famoso bar do Pasquale, no Passeio Público – que depois se tornaria restaurante e hoje, infelizmente, não existe mais. Os foliões da Banda Polaca começaram sua militância cultural na Fundação Cultural de Curitiba – responsável, nessa época, pela organização dos desfiles das escolas de samba da cidade. O curioso de perceber nessa história é que essa rapaziada organizava o carnaval das escolas de samba, que nesse momento começa a se solidificar como grande atração da folia da cidade. Traziam consigo também toda uma influência das escolas de samba do carnaval carioca. Por outro lado, o grupo carnavalesco Afoxé afirmava que Curitiba tinha samba e macumba na sua cultura popular. O grupo carnavalesco foi a partir do fim dos anos de 1970 a principal atração de abertura do carnaval de rua curitibano. Pela Avenida Marechal Deodoro desfilavam atabaques, xequerês e agogôs. Abençoados por ogãs, babalorixás e praticantes do candomblé curitibano que, juntos com simpatizantes, davam uma dimensão do quanto a cultura negra quebrava o racismo presente na cidade e conquistava a hegemonia da festa. Como bem lembrou o brilhante Muniz Sodré no seu clássico “Samba o Dono do Corpo”, o que chamamos hoje de samba e que nos identifica culturalmente como nação, é, na verdade, um prolongamento histórico dos ritos de dança e batuque dos escravos nas plantações de engenho durante o Brasil Colônia. Assim, mostrando que o negro durante a escravidão, não pode ser reduzido apenas a uma máquina produtiva.
Entrando agora na seara das escolas de samba, a década de 1970 será a solidificação do modelo influenciado pelo samba carioca, iniciado pelos bambas da Colorado da Vila Tassi. Várias escolas serão criadas e os desfiles curitibanos terão também o dilema enfrentado no mundo do samba carioca: tradição versus modernidade e luxo.
Na disputa pelo título de campeã do carnaval curitibano até a década de 1970, quatro escolas se destacavam como ganhadoras de títulos: Colorado, escola de samba do lendário Maé da Cuíca; Não Agite, escola na sua maioria formada por torcedores do Coritiba; Dom Pedro II e Embaixadores da Alegria. A partir de 1971, esse quadro muda e novas agremiações surgem diversificando a disputa. Esse fato se explica com a criação da Associação das Escolas de Samba de Curitiba, que vai passar a cuidar dos interesses das próprias escolas de samba, estimulando e bancando, assim, o surgimento de novas agremiações e, consequentemente, a afirmação e popularidade delas no carnaval da cidade.
No início da década de 1970, Júlio Souza, um folião que começou seu envolvimento com o carnaval curitibano vendendo confetes e serpentinas ainda menino na Rua XV de Novembro, junta-se a amigos e cria a escola de samba Acadêmicos da Sapolândia, do bairro Prado Velho. Já no carnaval de 1971, a Acadêmicos da Sapolândia na sua estreia fez uma grande e empolgante apresentação na pista com o enredo “Uma Feira na Bahia” e surpreendeu as concorrentes, conquistando o título de campeã do grupo de acesso B e também campeã do grupo principal. Isso porque a apuração das notas das escolas de samba do grupo A acabou em uma grande confusão e nenhuma escola do grupo foi declarada campeã, sendo assim os bambas da Sapolândia foram os campeões do carnaval da cidade.
Nessa profusão de surgimento de novas escolas de samba no carnaval de Curitiba na década de 1970 é curiosa a história da Mocidade Azul. Criada em 1975, é fruto de um problema que existiu em uma das escolas de samba mais tradicionais do carnaval curitibano até então: a Dom Pedro II. Em meados da década de 1970, a galera do Dom Pedro (que já era bem conhecida e tinha muita história no carnaval da cidade) deixou de ensaiar no clube do mesmo nome. A partir daí, os sambistas passaram a ensaiar no Clube Pinheiros. Seus ensaios e sua ginga foram premiados com três campeonatos: 1965, 1966 e 1967. Tem o mérito também de ser a primeira escola de samba do Brasil a ter uma puxadora mulher cantando nas suas alas, a negra e mãe de santo Orminda de Oliveira Rosa.
Com o passar do tempo, o Clube Pinheiros começou a se incomodar pelo fato da agremiação ensaiar em suas dependências contendo na sua razão social o nome de um clube rival, no caso o Dom Pedro II. Foi desse contexto que nasceu a Mocidade Azul, no ano de 1975. Criada, para poder continuar ensaiando no Pinheiros, a nova agremiação teve o azul no nome e na cor do pavilhão, uma homenagem ao velho clube. Assim, a Dom Pedro II continuou a existir fora do Cube Pinheiros e passou também a conviver com uma rival de sangue.
A Mocidade Azul se estabeleceu a partir da iniciativa de um trio de amigos de classe média. Marlene Monte Carmelo, Amauri Ferreira e o bicheiro Oswaldo Silva, conhecido como Afunfa no mundo contravenção. Amauri conheceu, no início da década de 1970, o carnaval carioca e lá percebeu que essa festa estava mudando. As escolas estavam se agigantando em número de contingentes e os desfiles se transformaram em grandes espetáculos visuais. Quando voltou para Curitiba, Amauri se deparou com a iniciativa da sua amiga Marlene de ter se desligado da Dom Pedro II e criado a Mocidade Azul. Amauri, então, traz toda a experiência vivida no carnaval carioca para a moçada da Mocidade Azul.
Mas para que esse projeto pudesse ser realizado, faltava um componente fundamental: investimento, ou seja, dinheiro. É aí que entra a figura do bicheiro Afunfa. Ele será o mecenas dos projetos de desfile da Mocidade Azul, que se transformará na maior vencedora do carnaval curitibano nas décadas de 1970 e 1980.
Inspirando-se nos bicheiros cariocas, que nessa época começavam também seu apogeu no carnaval da cidade maravilhosa, Afunfa reinou absoluto nessa fase do carnaval curitibano e a Mocidade Azul se tornou a mais rica, poderosa e bonita escola do carnaval da cidade. Isso só vai mudar quando Afunfa é acusado pela justiça de assassinar a esposa. Para se livrar do possível processo judicial, que hoje seria chamado de feminicídio, o bicheiro pratica uma fuga espetacular para Miami, nos Estados Unidos. A partir de então, a Mocidade passa a não mais contar com a verba do contraventor, mas prossegue ainda assim com uma das maiores forças dos desfiles curitibanos.
Contrapondo-se ao luxo do carnaval ditado pela galera da Mocidade Azul, algumas agremiações, surgidas nesse período, vão manter a tradição do samba no pé, que começou com os bambas da Colorado. A rapaziada dos Ideais do Ritmo será uma escola de samba que vai se notabilizar nesse período como uma agremiação inusitada, cujo o objetivo, de maneira nenhuma, era desfilar bonita ou luxuosa na avenida. Chocolate, apelido de Mansuedem Prudente dos Santos, fundador da escola e figura folclórica da festa, dizia que a finalidade da sua escola era, como revelava seu próprio nome, manter o ritmo do samba raiz no asfalto.
Outra escola de samba de Curitiba que também entrava nos desfiles para manter a tradição do samba era o pessoal do Deu Zebra no Batuque. Liderados pela matriarca Léa Dotzin, os bambas da Vila Santa Efigênia levantavam poeira nos grupos de acesso e apresentavam uma das melhores alas de passistas do carnaval de Curitiba. Sem contar, que Dona Léa, além de sambista raiz era também uma senhora líder comunitária da Vila Santa Efigênia, conhecida por suas feijoadas e rodas de samba, que conseguia manter a comunidade unida entorno de uma identidade de luta e organização comunitária.
Nesse período de auge e sucesso do carnaval curitibano, as ornamentações das avenidas e ruas foram destaques da festa. No carnaval de 1981, o tema da decoração que teve como idealizador do projeto o artista Fernando Popp e os desenhos riscados pelo famoso cartunista curitibano Solda, foi “carnaval da raça”, uma homenagem às etnias que forjaram o caráter da cidade de Curitiba. Já em 1982, o tema foi “ano de Iemanjá – Carnaval de todos”. Esse tema desenvolvido pelo artista Carlos Henrique Pilati demonstra que na década de 1980 o carnaval de Curitiba já tinha superado o distanciamento de classe social reproduzido muita vezes na sociedade curitibana, mas que na folia os sambistas, artistas, intelectuais e povo trataram de exorcizar nas cinzas do carnaval.
Bibliografia
- Tese de Mestrado. “Samba Quente, Asfalto Frio: Uma Etnografia Entre as Escolas de Samba de Curitiba. Viacava, Vanessa Maria. Universidade Federal do Paraná 2010.
- Jornal Gazeta do Povo. Reportagem “A Pioneira dos Repiques”, 25/01/2014.
- Sodré Muniz. Samba o Dono do Corpo. Mauad Editora, Rio de Janeiro 1998.
Carlos Mariano Filho, mais conhecido por professor Mariano, é historiador, professor de História, Sociologia e Filosofia da Rede Pública do Rio de Janeiro. Pesquisador de escola de samba desde 2000, sua primeira lembrança de encantamento do carnaval foi, ao ver na casa da sua tia Ana (uma espécie de camarim de desfile de carnaval), o ritual de preparação das baianas da Vila Isabel, com suas saias rodadas, miçangas e devoção à arte de rodar
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