“As moças de Minas”, que foi editado pela primeira vez em 1989, agora recebe edição atualizada
Por Kristiane Rothstein, com assessoria de imprensa
“Ditaduras são sempre um desastre, sob vários aspectos, para a sociedade onde se instalam”. Fazer esse alerta é o motivo pelo qual o jornalista e articulista da área de política Luiz Manfredini decidiu, pela terceira vez, reeditar o livro-reportagem: “As moças de Minas – Uma história dos anos 60”. A edição foi relançada recentemente pelas editoras Anita Garibaldi, de São Paulo, e Ipê Amarelo, de Curitiba.
O romance-reportagem é uma ode à democracia e Manfredini faz dele seu manifesto – em suas palavras, “um vigoroso libelo contra a ditadura militar brasileira”.
O livro narra a história de cinco jovens estudantes presas em Belo Horizonte, em 1969, por suas atividades de resistência ao regime militar, e os sofrimentos pelos quais passaram ao serem presas pela repressão política. Embora não seja, uma das personagens facilmente poderia ser confundida com Dilma Rousseff, a mineira que ganhou maior projeção política no Rio Grande do Sul e foi a primeira mulher a ser presidente do Brasil.
“A percepção das situações históricas, na medida em que elas se distanciam no tempo, tende a desbotar, sobretudo para as gerações que não as viveram, que assim se tornam vulneráveis ao discurso de que não houve nada de ruim entre 1964 e1985 no Brasil”, afirma Luiz Manfredini
Ao contar essa história, com base nas entrevistas que fez e em suas pesquisas, o autor traça um panorama dos anos de chumbo da ditadura militar brasileira.
Manfredini explica que as mudanças nas edições do livro ocorrem nos detalhes. “A segunda edição, de 2008, atualizou dados e modificou um pouco a linguagem de certas passagens, originalmente influenciadas pela politização da época, além de alterar substancialmente o design”, pontua. Nesta edição de 2020 também conta com mudança no projeto gráfico, que é assinado por Cláudio Gonzalez.
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Na data do primeiro lançamento, em 1989, “As moças de Minas”, fazia eco com “Em câmara lenta”, de Renato Tapajós, “O que é isso, companheiro?”, de Fernando Gabeira (que mais tarde virou filme), e “Os carbonários”, de Alfredo Sirkis – pioneiros em mostrar a ditadura militar brasileira por uma lente grande angular.
“As moças de Minas – Uma história dos anos 60”, tem 165 páginas, custa R$ 44,90 (já com frete) e pode ser comprado pelo telefone (41) 99965-0704.
Em entrevista ao Curitiba de Graça, Luiz Manfredini falou mais sobre a obra.
O que esta nova edição explica sobre intervenção militar? Quem pede intervenção militar, a seu ver, entende o que isso significa?
Esta reedição foi promovida justamente para, mostrando o que foi a ditadura militar, alertar para os dramáticos riscos da intervenção militar proposta por alguns setores da nossa sociedade. Porque intervenção militar significa sempre ditadura, violência, prisões, torturas, essas coisas. O livro mostra, então, o que realmente é uma intervenção militar. Por que, boa parte dos que pedem essa intervenção, não têm ideia do que seja e do que foi no Brasil em tempos nem tão remotos. Acham que os militares tomam o poder e logo o passam para os civis, numa rápida retomada do processo constitucional. Conversa! Vide 1964.
Você diz que a extrema direita “saiu do armário”. Por que ficaram tanto tempo escondidos? Ou ficaram arquitetando?
Penso que há uma vasta crise civilizatória que assola o mundo capitalista. Uma de suas características é a crescente despolitização das sociedades e uma espécie de “emburrecimento”, em que predomina o escapismo ou a busca por soluções a partir de um alternativismo que não leva a nada, pois é incapaz de compreender com precisão a realidade e seus impasses e vislumbrar soluções. Daí, a meu ver, nascem as ideias extremistas, como o fascismo, apresentado como panaceia para os dramas que vivemos. E isso vai se expandindo, muitas vezes sem que as pessoas percebam.
Por que muitos jovens não acreditam que houve ditadura no Brasil e por que muitas pessoas que viveram os “anos de chumbo” negam que tenha sido ruins?
Pois é, a percepção das situações históricas, na medida em que elas se distanciam no tempo, tende a desbotar, sobretudo para as gerações que não as viveram, que assim se tornam vulneráveis ao discurso de que não houve nada de ruim entre 1964 e1985 no Brasil. Algo que também afeta os que viveram o período, mas que, distantes da ação política, nada sofreram.
O capitão dirigiu-se ao quarto para vistoriar a documentação encontrada.
Rosário foi posta na cozinha e, na sala, o sargento Leo colocou
Laudelina contra a parede e, sem dizer palavra, apagou um cigarro em
sua barriga. A dor explodiu fervente, ricocheteando pelas entranhas.
Mas não houve tempo para sofrê-la porque o sargento, em seguida,
vibrou-lhe um golpe no estômago e, logo após, chutou-lhe um dos tornozelos.
Laudelina reagia erguendo o pé machucado, o militar chutava
o outro. Ela se desequilibrava e caía:
– Moço, porque você está me batendo? –perguntava.
O sargento não pronunciava palavra. Batia.
– Moço, deixa eu botar a roupa!
O sargento nada ouvia. Espancava sem cessar. De novo o cigarro
chamuscando a pele da barriga, o golpe no estômago, o chute nos tornozelos.
– Trecho do livro “As moças de Minas”
O que “As moças de Minas” podem nos ensinar?
“As moças de Minas” é um romance-reportagem, filiado à tendência da chamada literatura verdade. Ele parte da experiência de cinco estudantes universitárias de Belo Horizonte que lutaram contra a ditadura no final dos anos 1960, acabaram presas e submetidas à barbárie estatal então vigente, sob a batuta dos militares. A partir dessa situação concreta, o livro mostra mais amplamente o cenário da ditadura. É isso que o livro “ensina”: ditaduras são sempre um desastre, sob vários aspectos, para a sociedade em que se instalam. Assim, qualquer proposta de retorno ao autoritarismo é sempre um retrocesso.
Como foi o processo de escrita do livro e por que você decidiu reeditá-lo essas três vezes?
Realizei dezenas de horas de entrevistas, compulsei documentos no Superior Tribunal Militar, consultei obras sobre a ditadura, rememorei minha própria experiência e juntei tudo isso no livro. As reedições ocorreram porque o tema nunca saiu de foco. O Brasil, ao contrário de outros países da América do Sul, nunca encarou essa questão com a profundidade que ela merece, tanto que a proposta de intervenção militar volta à tona.
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