Em entrevista ao Curitiba de Graça, a cineasta Larissa Nepomuceno fala sobre porque abordar a vida de mulheres da “minoria” em seus documentários de estreia como diretora e roteirista
Por Camile Triska
A igualdade entre homens e mulheres ainda está longe de ser uma realidade no Brasil e os movimentos e iniciativas que lutam pelos direitos femininos são cada vez mais crescentes. Mas, no meio dessa luta, será que todas são incluídas? Afinal, fazemos parte de realidades distintas: pobres, ricas, surdas, cegas, brancas, negras, índias, lésbicas, heterossexuais, cisgêneros (mulheres que têm seu sexo e anatomia biológica identificada com seu gênero), transexuais…
Em seus dois primeiros documentários, a cineasta curitibana Larissa Nepomuceno mergulha um pouco em duas dessas realidades: a da primeira travesti negra a concluir um doutorado na UFPR em “Megg – A margem migra para o centro”, e das mulheres surdas em “Seremos Ouvidas”.
“É preciso defender as pautas identitárias, e promover um feminismo que contemple todas as mulheres. Eu sou uma mulher privilegiada, então tenho feito essa construção de olhar para além da minha zona de conforto”, afirma Larissa Nepomuceno.
Para a cineasta, os documentários são uma ferramenta potente na educação não formal e para ajudar a quebrar preconceitos. “Eu costumo dizer que aprendo muito conversando com pessoas, ouvindo suas experiências, e o fazer documental tem muito disso. Muito aprendizado pra mim, pra equipe, e através desse fazer, consigo falar de temas que julgo importante e que gostaria de levar a outras pessoas”, aponta.
As produções “Megg” e “Seremos Ouvidas” surgiram durante a realização de um curso de cinema feito depois de Larissa se graduar em Artes Visuais pela UFPR e trabalhar com assistência e direção de arte que, segundo ela, ajudou a construir a sua formação como diretora e roteirista. “A direção de arte me auxilia a pensar o filme como um todo, o porquê de usar determinados elementos e como eles ajudam a contar a história para além da narrativa verbal”, explica Larissa, que foi assistente na websérie “Eu, Celebridade”, direção de Gil Baroni, e codirigiu duas entrevistas do projeto “A Tenda”, sobre mulheres na política.
A estreia da cineasta curitibana como diretora e roteirista já começou premiada. “Megg” foi lançado no segundo semestre de 2018, já recebeu nove prêmios e participou de 68 festivais, incluindo a recente 16ª Mostra Internacional do Cinema Negro (MICN) – para quem perdeu a exibição, o documentário está disponível gratuitamente no YouTube da Beija Flor Filmes, produtora de ambos filmes.
Já “Seremos Ouvidas” ganhou seis premiações e está na seleção de 35 festivais – o próximo será o Cabíria Festival – Mulheres e Audiovisual, que terá uma edição on-line e gratuita entre os dias 18 a 29 de novembro. A programação completa e como assistir os filmes estão disponíveis no site www.cabiria.com.br. Larissa ainda participará de um debate, no dia 28 de novembro, às 20h, no YouTube do festival, com o tema “Existir para além de resistir”.
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Em uma entrevista exclusiva para o Curitiba de Graça, Larissa Nepomuceno explicou mais sobre como foi a escolha dos temas dos seus dois primeiros documentários, as histórias mais marcantes que ouviu das entrevistadas, por que abordar o feminismo em suas diferentes realidades, além das dificuldades que as mulheres enfrentam no cinema e a falta de apoio à cultura no Brasil.
Em seus dois documentários, você aborda mulheres que vivem realidades diferentes da maioria: uma mulher trans negra e três mulheres surdas. O que te motivou a retratar esses universos femininos da minoria?
Comentei anteriormente que gosto muito de ouvir as experiências das pessoas. Assim, ambos os filmes partiram de uma pergunta. No filme com a Megg, quando conheci a história dela, me perguntei o que eu já tinha ouvido falar sobre travestis e me dei conta de que eram sempre falas muito estereotipadas e transfóbicas. Além disso, para mim, não fazia sentido que apenas em 2017 uma travesti tivesse se tornado Doutora no Brasil. O projeto partiu dessa vontade de apresentar a história da Megg como uma realidade possível. Queria muito que fosse uma extensão da sua militância, que quebrasse com a visão estereotipada e marginalizada que as pessoas em geral têm de uma travesti. E, além disso, que pudesse trazer uma figura positiva para pessoas trans e travestis que, segundo a própria Megg, nunca têm uma representação positiva para que possam se espelhar e se inspirar.
Já “Seremos Ouvidas” surgiu a partir de aulas de Libras (Língua Brasileira de Sinais) que tive, durante conversas com mulheres surdas. Lembro que fui pesquisar sobre o assunto e fiquei muito assustada com o pouco de informação que encontrei. Logo depois procurei filmes sobre surdez e em nenhum deles era mencionado o feminismo surdo. Então, achei que eu deveria produzir esse conteúdo. Parecia-me absurdo que ninguém estivesse falando sobre isso.
Infelizmente, o racismo e a transfobia são fortes no Brasil. A Megg foi a primeira travesti negra a concluir um doutorado na UFPR. Durante a produção do documentário, quais foram as histórias dela que mais marcaram você?
Foram duas. A primeira, as diversas vezes que ela comentou que sofreu transfobia na área acadêmica: alunas e alunos questionando se ela seria uma boa professora, curiosos com qual conteúdo passaria em sala de aula, e quando ela passou em uma seleção para trabalhar na UFPR chegaram a questionar se ela havia passado por mérito próprio ou tinha conseguido a vaga através de outros meios. E a segunda é a que está no filme, quando ela conta como escolheu seu nome. Foi surpreendente porque a entrevista já havia acabado e ela disse que gostaria de falar mais uma coisa. Então, ficamos muito felizes por ela ter se sentido tão à vontade a ponto de compartilhar algo tão pessoal.
Já no documentário Seremos Ouvidas, quais as principais dificuldades e lutas que elas relataram?
A maior dificuldade é a falta de acessibilidade. Faltam conteúdos em Libras, assim como falta que as pessoas ouvintes conheçam Libras. Os relatos são vários, desde coisas simples como pedir uma informação na rua e ser mal tratada ou ignorada até a falta de acessibilidade para fazer uma denúncia, pois a polícia não dispõe de um aplicativo com acessibilidade e muitas vezes não possui intérpretes de Libras nas delegacias. Então existe quase que essa desumanização, os ouvintes olham as mulheres surdas apenas pelo viés da surdez. E isso se estende para todas as áreas: escola, mercado de trabalho, relacionamentos, violência obstétrica, o maior índice de abuso sexual por parte de pais e responsáveis dentro de casa, etc.
Ao ouvir essas mulheres de mundos um pouco diferentes do seu, você percebeu que é preciso alguma mudança no feminismo, na luta pelo direito das mulheres e olhar com atenção maior para casos diferentes, como os retratados nos seus documentários?
Sim! É preciso defender as pautas identitárias e promover um feminismo que contemple todas as mulheres. Eu sou uma mulher privilegiada, então tenho feito essa construção de olhar para além da minha zona de conforto. E realmente espero que a partir dos meus filmes as pessoas passem a fazer o mesmo exercício. Já recebi relatos de pessoas que, depois de assistirem “Seremos Ouvidas” têm começado a pensar sobre como podem ajudar as mulheres surdas nesta luta e isso me deixa muito feliz.
Como diretora e roteirista, esses são os seus dois primeiros documentários com assuntos ligados ao feminismo, direito das mulheres, preconceitos. Você tem intenção em continuar discutindo esses temas em seus próximos projetos?
Sim, os projetos que tenho em mente giram em torno desses assuntos. É preciso que tenhamos cada vez mais mulheres no cinema, seja na direção, na equipe ou como personagens ativas. Pretendo continuar discutindo pautas identitárias e direitos humanos.
“O cinema brasileiro sempre foi muito machista. Foram poucas as diretoras
que conseguiram superar o preconceito para realizar seus filmes”, afirma Larissa Nepomuceno
Como é o cenário para cineastas mulheres no Brasil? Elas têm mais dificuldades que os homens?
O cinema brasileiro sempre foi muito machista. Foram poucas as diretoras que conseguiram superar o preconceito para realizar seus filmes. Uma delas é a Ana Carolina, que escolhi como tema da minha dissertação de mestrado. Falando de mulheres negras, então, a falta de oportunidades é evidente. Até pouco tempo tínhamos apenas um longa-metragem dirigido por uma mulher negra e apenas recentemente, com a democratização do fomento público e o barateamento dos custos de produção e equipamentos, que começamos a mudar essa realidade. Mas, ainda há muito que se fazer, ainda mais diante da paralisação das políticas públicas.
Em meu caso, percebo uma surpresa quando falo sobre meus filmes e a carreira que eles têm feito para alguns homens, como se, de alguma forma, não acreditassem no meu potencial. Mas, há problemas maiores, como muitas mulheres que relatam assédios em sets de filmagem, entre outras situações de agressão e preconceito. Ao mesmo tempo, as mulheres vêm a cada dia ocupando mais espaços, exigindo respeito e profissionalismo e provando o seu potencial. Hoje em dia são muitas as diretoras de sucesso no país e tenho certeza que isso vai aumentar.
Vimos nos últimos anos uma falta de apoio e desvalorização da cultura pelo governo federal, principalmente. Como está esse cenário de cinema hoje no Brasil? Existe luz no fim do túnel?
É complicado. Nos últimos anos vimos um processo de sabotamento e sucateamento da cultura. A Cinemateca Brasileira está sob risco, então é muito desanimador. A atual situação da Ancine está difícil, o fomento público está parado. Não acho que as políticas públicas vão acabar, mas estamos em um momento desafiador. Ao mesmo tempo, o surgimento das produções brasileiras para streamings (como Amazon e Netflix), abre um novo mercado para os profissionais, e esperamos maiores investimentos por parte desses players. Então, existe uma perspectiva ainda promissora no mercado audiovisual, mas é necessário nos mobilizarmos para que possamos ter mais apoio público ao cinema e à cultura como um todo.
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