Sonia: Peculiaridades de uma professora de escola rural

Na década de 80 e 90, ser professora de uma escola rural era mais do que ensinar. Conheça a trajetória e desafios de Sonia Maria Becker da Silva em seus anos de docência

Sonia, em sua chácara, em 2020. Imagem gentilmente concedida por José Adilson da Silva

Por Alexandra F. M. Ribeiro e Alboni. M. D. P. Vieira
Sonia Maria Becker da Silva nasceu em 23 de janeiro de 1966, com a ajuda de uma parteira, assim como seus outros sete irmãos. Cresceu e vive, até a data da entrevista concedida, em Tijucas do Sul, município rural marcado pelo trabalho com a agricultura e pela baixa densidade demográfica. Seus traços físicos, esboçados no retrato, revelam seus antepassados tanto de origem alemã, herdados do pai Alucio, quanto polonesa, advindos da mãe Izaltina.
Para além das semelhanças que carrega dos pais, Sonia salientou as memórias e os valores que carrega de seus progenitores. Na lembrança de Sonia, seu pai sempre foi um homem sério e rígido na disciplina dos filhos, mas que não deixava faltar mantimentos dentro de casa. Seu pai diligenciava a ferraria durante o dia, enquanto sua mãe e os filhos trabalhavam na lavoura – roçando e arando a terra, plantando e colhendo – e no manejo do engenho de farinha. Na hora do almoço, era o pai quem levava a refeição para a família na plantação.
Sonia recorda-se de que desde muito pequena ia para a lavoura e lá ficava dentro de um balaio enquanto os mais velhos estavam na “lida da terra”. Mesmo na infância, ela ajudava nas atividades de casa e alimentava os animais. Por volta de seus 10 anos, já estava plantando feijão, arroz e milho. Já o manuseio do engenho ela não se recorda quando começou a fazê-lo, entretanto, rememora como era árduo o manejo da “engenhoca com dois monjolos e um forno”, que era usada para torrar a farinha. Sonia contou que era desgastante entrar no rio, em meio à geada, para tirar o milho e depois ir mexer no forno quente. A dura atividade era compensada no momento em que a mãe fazia o biju doce para que eles pudessem comer tomando chá.
Ainda sobre a mãe, Sônia contou que ela era a boleira da região, “tinha mão boa para cozinha”. Em suas palavras: “minha mãe era uma mulher muito humilde, com um caráter que levo para mim, para meus filhos e para minhas netas. Sempre trabalhou muito na roça e no forno de torrar farinha”. Curioso é que as características que Sonia salientou acerca de sua mãe – trabalhadora, humilde, de bom caráter, ótima cozinheira – também podem ser observadas em sua trajetória.
Em meio a uma risada solta, Sonia nos contou sobre o dia de seu casamento, no ano de 1983. Devido à chuva torrencial que caía, ela – usualmente vestida de noiva, mas curiosamente usando galochas – foi levada de carro puxado por um trator até a igreja, enquanto que Juca – José Pedro da Silva, o noivo – deparou-se com o rio cobrindo a ponte no caminho entre sua casa e o local que ocorreria a celebração. Entretanto, tratores não faltavam na região e o noivo pôde chegar a tempo de oficializar o matrimônio. Da união com Juca, Sonia tem dois filhos, sendo que um seguiu os passos profissionais da mãe e tornou-se professor na região.
Após um ano de casada, com aproximadamente 18 anos, Sonia deu início à sua carreira docente na Escola Rural Municipal Castelo Branco. Ela contou que ingressou na profissão sem necessidade de formação específica ou de concurso público e que foi seu sogro quem pediu para o prefeito para que sua nora fosse a professora da comunidade. Sobre sua formação, Sonia narrou: “Não foi fácil, eu tinha apenas a 3ª série primária quando comecei a trabalhar como professora, no ano de 1984. Após ser convocada, hospedei-me na casa da professora Conceição, para ela me ensinar a preparar e dar aulas. Sob a orientação de dona Conceição, elaborei uma apresentação para o Secretário de Educação, que posteriormente me enviou para ficar uma semana na casa de outra docente da região para receber um curso de preparação ofertado pelo município”.
As narrativas de Sonia são comuns acerca da formação de professoras de escola rural do período. De acordo com as pesquisadoras Maria Antonia Souza, Maria de Fátima Rodrigues Pereira e Maria Iolanda Fontana, que se dedicaram a estudar as docentes idosas do campo, na Região Metropolitana de Curitiba e nos Campos Gerais, as docentes que iniciaram suas carreiras entre os anos de 1980 e 1990 “se formaram no trabalho e na relação com professoras com maior tempo de experiência nas escolas” (2020, p. 1360). Entretanto, depois de anos trabalhando como professora e mesmo com as dificuldades da distância entre sua moradia e o local para finalizar seus estudos, Sonia deu continuidade em sua formação. Por meio do Ensino Supletivo ela concluiu o Ensino Fundamental e em 2004 concluiu o magistério, ambos cursados no período noturno. Nessa trajetória contou com a colaboração e motivação de sua sobrinha Luciane.
Mas os desafios de ser uma professora da escola rural iam além das dificuldades de formação e perpassavam pela distância entre a moradia e a escola, a variedade de atividades exercidas e a estrutura física escolar. Durante 14 anos, a distância entre a casa de Sonia e a escola era de dois quilômetros, trajeto que variava o grau de dificuldade de acordo com o clima. Nos dias de reunião, era preciso caminhar seis quilômetros até o ponto de ônibus para de lá seguir mais 16 quilômetros até o centro da cidade. No ano de 1998, ocorreu a nuclearização de escolas e Sonia passou a dar aulas na Escola Rural Municipal Tomé de Souza, que ficava a 10 quilômetros de sua casa. Seus dois últimos anos de trabalho foram na Creche Branca de Neve, no centro da cidade.
Na escola, o trabalho cotidiano de Sonia era composto por limpar, cozinhar e ensinar. Sonia contou que chegava muito cedo à escola, “às vezes já havia aluno esperando na porta” e que sua sequência de trabalho dava-se na variação dessas atividades: guardar os materiais; ir com as crianças ao rio para buscar água no balde; limpar a sala; fazer fogo no fogão à lenha; passar as atividades; orientar individualmente os alunos, pois havia crianças de cinco séries diferentes na sala – característica da classe multisseriada –; preparar o lanche; e lavar a louça. Sonia contou que o bolo, o pão e a bolacha ela trazia prontos de sua casa, mas a sopa era preparada na escola e que nesses dias precisava conciliar a atenção para a sala e para o fogão, cuidando para que a refeição não queimasse.
Quanto à estrutura física da escola, Sonia descreveu naturalmente alguns detalhes. A escola era de madeira, composta por uma sala de aula e uma cozinha, sendo o banheiro uma “casinha” de madeira perto do mato. Sonia, em meio a gargalhadas, contou que um dia, ao chegar à escola, observaram que os cabritos do vizinho haviam dormido na sala de aula e foi com a ajuda dos alunos que lavaram o ambiente para tirar o cheiro que os animais tinham deixado. O relato de Sonia pode ser compreendido pelo entendimento de Souza, Pereira e Fontana: “A vida na escola é traçada pela identificação pessoal com a formação das crianças e pelo trabalho como extensão da casa e da lavoura” (2020, p. 1361). Havia uma cumplicidade entre a vida de Sonia e de seus alunos.
Apesar dos desafios narrados, Sonia recordou bons momentos de seu tempo de professora rural. Ela contou que iniciou dando aulas para 12 alunos da 1ª série, mas que com o passar dos anos o número de alunos aumentava, assim como tinha que trabalhar com as quatro série juntas sem ajuda. Depois de sete anos, foi preciso dividir a turma em dois turnos e o município contratou uma auxiliar para ajudá-la. Para ela, um momento muito especial de sua trajetória foi quando recebeu a homenagem de melhor professora alfabetizadora do município e que depois dessa honraria passou a receber vistas de supervisoras que elogiavam seu trabalho.
Sobre o envolvimento com os alunos, Sonia narrou de forma carinhosa algumas passagens. Contou que os alunos eram obedientes, ouviam com atenção e nunca a responderam mal. Se chegava alguma visita à escola, todos os alunos levantavam e ficavam em pé para cumprimentar a visita. Ela também se recordou da aluna Denilda, “filha do Sr. Antonio, o Totó”, que levava uma delícia de aipim frito. Lembrando-se de seu período como professora, em meio a lágrimas, Sonia falou: “Um tempo que eu era arrodeada de carinho, cartinhas simples, mas de coração. As crianças foram a razão de permanecer firme os 25 anos de trabalho e dedicação à educação do município”.
Hoje, depois de 11 anos aposentada, Sonia cuida de sua horta e de seus animais. Passa boa parte de seu tempo na cozinha, cozinhando para seu marido e para os “camaradas que trabalham com ele”. Nos finais de semana, recebe muitas encomendas de bolachas, tortas, cuques e broas, dos moradores da região. Tem admiração especial de seu filho José Adilson da Silva, que ficou grato pela história de sua “guerreira” estar sendo contada.

Para saber mais

Agradecimento à Sonia Maria Becker da Silva, que gentilmente concedeu a entrevista, e a José Adilson da Silva, pela foto enviada para a coluna
 

 
Alexandra F. M. Ribeiro é doutoranda e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais e Alboni. M. D. P. Vieira é doutora e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais.