Papo de Bamba: Crítica social como mote do Carnaval politizado

Uma das escolas precursoras com temas em sequência é a São Clemente, que completa sessenta anos neste ano

Carlos Mariano Filho
Neste ano, a escola de samba São Clemente completa sessenta anos de história. Oriunda do tradicional bairro da zona sul do Rio de Janeiro, Botafogo, essa simpática agremiação carnavalesca foi fundada no dia 25 de outubro de 1961. Apadrinhada pela minha querida Unidos de Vila Isabel, tinha as cores azul e branca em sua bandeira. Mas, por iniciativa de um dos seus fundadores, Ivo da Rocha Gomes, em acordo com outros bambas da escola, as cores do seu pavilhão foram mudadas para preto e amarelo. Ivo, assistindo no Maracanã a uma partida de futebol entre o seu Fluminense contra o grande time uruguaio Penharol, ficou encantado com a inusitada combinação de cores da camisa do clube portenho: preto e amarelo.
Durante as décadas de 1960 e 1970, a São Clemente ficou boa parte dos anos desfilando nos grupos de acessos intermediários. A exceção foi o carnaval de 1967, quando integrou pela primeira vez o grupo 1 carioca (que hoje chama-se grupo especial), estando entre as grandes escolas de samba. Com o enredo “Festas e tradições populares do Brasil”, a escola, infelizmente, não teve um bom desempenho na pista, ficando nas últimas colocações e, assim, sendo rebaixada para o grupo de acesso.
Mas, essa situação começa a mudar na década de 1980, quando o país também passa a sofrer um processo de mudança social e política. Os ventos da redemocratização do Brasil começam a soprar depois de trinta anos de autoritarismo militar – que também nos tirou o direito de votar de forma direta para presidente da República. No fim da década de 1970, com a luta pela anistia dos exilados políticos, mas, sobremaneira, a partir de 1984, com o movimento das Diretas Já, a sociedade brasileira começa a pressionar o decadente regime para que a democracia e os direitos civis políticos e sociais voltassem a ser os pilares da democracia.
É nesse contexto que a São Clemente começa a mudar seu perfil de enredos e a ser vanguardista numa proposta de carnaval que terá na crítica social seu mote ideológico na construção de sua narrativa. Contribui, para isso, a vinda para a escola de uma dupla de carnavalescos, a partir de 1984: Carlinhos Andrade e o saudoso Roberto Costa. Carlinhos, já estava na escola desde 1982, tentando mudar levemente os conteúdos dos enredos da escola. Porém, foi somente dois anos depois, com a chegada do companheiro Roberto Costa, que Carlinhos encontrou um norte para seus enredos. A São Clemente iniciava, então, a construção de seu pilar de sustentação nos enredos de carnaval: a crítica social, algo inovador para a época.
Assim, entre 1984 a 1990, a São Clemente escreve seu nome na história do carnaval carioca, com seus enredos que trazem para os desfiles das escolas de samba uma crítica político-social, que faz Carlinhos e Roberto ganhar o respeito da crítica carnavalesca e do público.
Logo de cara, na sua estreia em 1984, a dupla leva para a Marquês de Sapucaí “Não corra, não mate, não morra – o diabo está solto no asfalto”, um alerta para o alto índice de morte nas estradas, que já naquela época ceifava milhares de vida no Brasil. O tema (infelizmente, ainda é relevante dentro da nossa sociedade) abordava a imprudência dos governos que não investiam na manutenção das estradas e também a irresponsabilidade dos motoristas, que não respeitavam as leis de trânsito.
O ótimo desempenho na pista levou a escola de Botafogo ao quarto lugar do grupo 1B, uma espécie de segunda divisão e, assim, obteve uma vaga para voltar, depois de décadas, ao grupo principal das escolas de samba do carnaval carioca.
Com o foco na crítica político-social, a escola faz e impõe um estilo muito peculiar de enredos, que trata de forma criativa e contundente temas sensíveis. AIDS, a falta de moradia para o povo pobre, inflação alta, menores abandonados e mercantilização do samba foram entoados na avenida, consolidando o vanguardismo da escola no grupo das grandes do carnaval e adquirindo respeito e atenção da opinião pública.
Já familiarizada com o uso da crítica social e em desfilar no grupo das grandes escolas de samba do Rio de Janeiro, a São Clemente chega à última década do milênio e, em 1991, traz para a passarela Darcy Ribeiro com o enredo impactante e ousado: “Já Vi Este Filme”. Carlinhos Andrade e Roberto Costa, agora acompanhados de Cesar D’Azevedo, trazem uma história futurista que se passa no ano de 2991, quando numa quarta-feira de cinzas, o sinal dos tempos chega e é comandado por Satanás. O fim do mundo é realizado no palco do carnaval em um espetáculo alucinante.
Com esse desfile original e forte, os carnavalescos da São Clemente encerram uma espécie de saga de enredos que denunciam no plano carnavalesco e cultural as mazelas sociais das décadas perdidas vividas no Brasil desde o fim da Ditadura Militar ao início da Nova República. “Já Vi Este Filme” é o retrato de uma espécie de melancolia e desespero que toma conta da sociedade brasileira no fim do milênio. Depois de trinta anos sob uma cruel e corrupta ditadura militar, com a volta da democracia da chamada Nova República, os brasileiros veem a esperança de a sua vida melhorar reacender e se esvair com a derrota das Diretas Já, em 1984.
As desventuras em série continuam… O aumento da violência urbana, a morte de Tancredo Neves, em 1985, depois de ganhar as eleições indiretas no colégio eleitoral de Paulo Maluf (que representava a força ainda do regime militar) e, finalmente, a decepção com o mandato do primeiro presidente eleito diretamente depois da ditadura militar, Fernando Collor de Mello, em 1989. Collor acabaria impichado em dezembro de 1991, acusado de corrupção no esquema PC Farias, seu tesoureiro de campanha. Todo esse sofrimento e desgosto pareciam intermináveis e davam uma sensação de mal estar civilizatório à população brasileira, gerando um clima de desalento. Nada mudava na nossa história, tudo se repetia como numa série de filmes de horror.
A São Clemente foi a última escola a adentrar na Sapucaí no domingo dia 10 de fevereiro de 1991. A estética, desenvolvida pelo trio de carnavalescos da escola para materializar o enredo “Já Vi Este Filme”, foi totalmente inovadora e nunca vista nos desfiles das escolas de samba até então. Ao longo do seu desfile, a São Clemente atravessa a avenida com alegorias despedaçadas, representando o fim do mundo, fantasias com cores escuras e quentes, dando a ambientação do inferno. O fantástico samba-enredo de autoria de Manoelzinho Poeta, Jorge Melodia e a Haroldo Pereira serve muito bem ao desfile e é respaldado por uma atuação fenomenal da bateria comandada por Mestre Renatinho Gomes, que hoje preside a escola de Botafogo.
Após retratar o fim do mundo em pleno carnaval, o surpreendente e demolidor desfile continua como uma espécie de ressurreição demoníaca comandada pela figura mitológica de Clementius. Ele representa a própria história do Brasil, que se repete de forma caótica e cíclica. Com suas guerras, fome, escravidão e presidentes demagogos – como Collor, que tinha acabado de se eleger e já estava impopular e seria impichado no fim de 1991, mesmo ano do desfile.
O desfile impactante da São Clemente não rendeu, em termos de soma de notas de jurados, bom resultado. A escola ficou em 13º lugar, atrás da toda poderosa Mangueira, que também nesse ano não foi bem avaliada pelos jurados. A escola de Botafogo foi rebaixada para o acesso. Mas, apesar do rebaixamento, esse enredo da São Clemente foi muito bem avaliado pela crítica especializada e pelos três jurados de enredo (na regra da época, cada quesito tinha três jurados,  que deram dez para a proposta de narrativa da escola.
A comentarista e carnavalesca Maria Augusta, na época, na extinta Rede Manchete, ficou maravilhada com o desfile e com o recurso inovador usado pelos carnavalescos: levarem, pela primeira vez na história da Sapucaí, duas comissões de frente e dois abre alas iguais, abrindo e fechando a passarela. Normalmente, há apenas uma comissão de frente e um abre alas, que têm a função de abrir o desfile. A grande inovação vem exatamente daí, na repetição dos segmentos, no início e no fim da escola na pista, representando a ideia de repetição da história. Tanto a comissão de frente como o abre-alas tinham satã como figura representativa do caos que imperava eternamente na história do Brasil.
“Já Vi Este Filme” é daqueles desfiles que, embora não tenha levado a escola ao êxito do título, fica eternizado em nossos corações e mentes por dizer muito sobre nossa história até hoje. Pensando na narrativa desse enredo e, olhando para nossa realidade atual, chego à conclusão que a profecia da São Clemente chegou mais cedo do que 2991.
Salve a São Clemente Irreverente!
Assista ao vídeo do desfile
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Carlos Mariano Filho, mais conhecido por professor Mariano, é historiador, professor de História, Sociologia e Filosofia da Rede Pública do Rio de Janeiro. Pesquisador de escola de samba desde 2000, sua primeira lembrança de encantamento do carnaval foi, ao ver na casa da sua tia Ana (uma espécie de camarim de desfile de carnaval), o ritual de preparação das baianas da Vila Isabel, com suas saias rodadas, miçangas e devoção à arte de rodar
 
 
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