Mulheres Paranaenses: Partos e benzimentos pelas mãos de Dona Chica

Embora não fosse nascida no Paraná, a dona Chica ficou conhecida em São José dos Pinhais, região metropolitana de Curitiba, pelos seus benzimentos e partos

dona chica são josé dos pinhais
Francisca Ana Raupp Martins, a dona Chica. Foto: Acervo de Dilma Francisca da Silva.

Por Alexandra F. M. Ribeiro e Alboni. M. D. P. Vieira
A escolha de Dona Chica como uma das representantes das mulheres paranaenses justifica-se porque a maior parte de seu trabalho e o reconhecimento do mesmo aconteceram cidade de São José dos Pinhais, no Paraná.
Estima-se que Francisca Ana Raupp Martins possivelmente nasceu nas redondezas de Florianópolis, no mês de julho, entre os anos de 1910 e 1913, oriunda de descendência alemã e indígena. Contra a vontade de seus pais, casou-se entre seus 13 e 15 anos com João Fermino Martins. Durante os aproximadamente 48 anos de união, tiveram 16 filhos. O primeiro descendente nasceu no ano de 1927 e o último em 1951. Dona Chica, apelido pelo qual carinhosamente passou a ser conhecida, e o esposo moraram em Santa Catarina por mais de duas décadas. Lá ela era do lar e ele pescador, mas ambos trabalhavam na lavoura e na criação de porcos e galinhas.
Com o passar dos anos, além das atividades cotidianas, Dona Chica passou a aprender novas habilidades. Em entrevista concedida às autoras, sua neta Bernadete narrou que, por intermédio de uma tia, Dona Chica foi descobrindo os modos de ser de benzedeira e por necessidade desenvolveu o “dom de trazer filhos ao mundo”.
Quando se mudou para o Paraná, por volta de 1945, Dona Chica dominava a arte de partejar e de benzer.
Os benzimentos, para os mais variados motivos, aconteciam no bairro Águas Belas, localizado na cidade de São José dos Pinhais, na casa de Dona Chica. A filha Dilma conta que as pessoas procuravam-na para benzer “cobreiro, arca caída, dor de dente e ouvido, tirar quebranto, ferida na perna, tristeza, crianças com dor de barriga etc.”. A historiadora Mary Del Priore explica que desde o período do Brasil colonial, o curandeirismo, “[…] um tipo de medicina praticada na base de conhecimentos vulgarizados, popularizados, adquiridos através do empirismo” (2017, p. 88), era uma necessidade e quem o praticava merecia o respeito e a estima do povo.
Dona Chica, além de não cobrar nada pelos benzimentos, acabava oferecendo refeições para aqueles que vinham de longe para consultar-se. Quando Dona Chica considerava que a enfermidade estava fora de seu alcance de ajuda, recomendava que o enfermo buscasse auxílio na medicina tradicional, mas alguns preferiam buscar o socorro de Dona Chica a procurar assistência médica. Segundo sua neta Bernadete, “as pessoas tinham muita fé que ela curava quem a procurasse”. Não nos cabe afirmar que ela promovia a cura, mas compreende-se, por meio dos relatos, que havia uma crença popular de que Dona Chica curava.
Dona Chica valia-se de seus conhecimentos para fazer “simpatias, garrafadas de vitaminas, gemadas para anemia”, além de ensinar remédios à base de hortelã e azeite de oliva. Para o historiador Jacques Le Goff, a descoberta humana das úteis propriedades dos vegetais tem longas e profundas raízes no conhecimento instintivo, mas é certo que tais conhecimentos são resultados de uma série de experiências e que a botânica foi, por longo tempo, fonte de atenção e de estudos para curandeiros, boticários e médicos. Aos conhecimentos que lhe foram transmitidos oralmente, Dona Chica agregou as novas possibilidades de uso que encontrou das ervas disponíveis para, com isso, trazer algum alento àqueles que a procuravam.
Além da manipulação das ervas, Dona Chica dominava a arte de partejar. A qualquer hora do dia ou da noite e sem importar o dia da semana, pessoas das redondezas iam buscá-la com carro de boi, de carroça ou até mesmo a pé. Já existia a Maternidade São José dos Pinhais, mas não se tinha o costume de ir ao hospital para “dar à luz”. De acordo com o Ministério da Saúde, mesmo nos dias atuais, é importante o trabalho realizado pelas parteiras, pois são elas que prestam assistência às mulheres e crianças nas zonas rurais, ribeirinhas e lugares de difícil acesso.
Dona Chica não cobrava nada de sua clientela, que era composta por diversos estratos sociais. Após o parto, ela fazia acompanhamento diário à mãe e ao recém-nascido e sua assistência ia do curativo do bebê até os cuidados com a alimentação da mulher. Para as mulheres que não tinham condições financeiras para fazer a canja do pós-parto – alimentação do período que na crendice popular auxiliava na produção de leite e na recuperação da mãe – Dona Chica matava as galinhas de sua família e as levava. Quando sem dinheiro ou a distância a impedia de comprar tecido, Dona Chica usava seus lençóis de cretone para fazer fraldas e faixinhas em sua máquina de costura para levar aos bebês que não tinham. Dos partos de pessoas “abonadas”, Dona Chica regressava repleta de presentes ou os recebia posteriormente. Os mimos variavam entre roupas de cama e mesa que Dona Chica transformava em material para outros bebês necessitados. Valendo-se de sua habilidade e de seus materiais, Dona Chica, como diria seu filho Aducio, “fazia parto para qualquer uma”.
Durante várias décadas, os materiais que levava para os partos eram panos, uma bacia esmaltada, uma tesoura e um jarro. Porém, por volta de 1963, houve complicações em um dos partos, então, ela e a família foram até a saúde pública do município para narrar as dificuldades. A partir desse momento, Dona Chica passou a ter licença de parteira, a receber cursos e o material diretamente do governo Paraná.
O treinamento de Dona Chica pode ser compreendido por meio do conhecimento das atividades promovidas pelo governo. Os pesquisadores Tânia Maria de Almeida Silva e Luiz Otávio Ferreira (2011) explicam que as ações de treinamento e controle de parteiras foram originadas pelo Serviço Especial de Saúde Pública, desde os anos de 1940, e que tais medidas foram se intensificando pelo país até os anos de 1970. No entendimento do projeto governamental, o treinamento e o controle das parteiras, além de lhes impor rigorosos padrões higiênicos na realização de partos e nos cuidados com os recém-nascidos, promovia a popularização de ações de saneamento ao recorrer ao prestígio dessas mulheres nas comunidades em que atuavam. Durante mais uma década, Dona Chica passou a receber cursos e materiais da saúde pública, além de ter de registrar cada bebê que fazia o parto.
Dona Chica faleceu, com sua filha, no ano de 1973, por meio da imprudência de um motorista de carro, em frente à casa da família. A notícia de seu falecimento foi noticiada no rádio local e, devido à sua popularidade na região, uma pequena multidão compareceu ao velório para despedir-se daquela que, por suas mãos, “trouxe tantas vidas ao mundo”.

Para saber mais:

  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Parto e nascimento domiciliar assistidos por parteiras tradicionais: o Programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais e experiências exemplares. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2010. 90 p.
  • DEL PRIORE, Mary. Magia e medicina na colônia. DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2017. p. 78-114.
  • LE GOFF, Jacques. As plantas que curam. In: LE GOFF, Jacques (org.). As doenças têm história. Portugal: Terramar, 1985. p. 343-357.
  • SILVA, Tânia Maria de Almeida; FERREIRA, Luiz Otávio. A higienização das parteiras curiosas: o Serviço Especial de Saúde Pública e a assistência materno-infantil (1940-1960). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 18, supl. 1, dez. 2011, p. 95-112.

Agradecimento à neta Bernadete Martins Cordeiro; aos filhos Aducio Martins e Dilma Francisca da Silva; à nora Aparecida Ferreira Martins, que gentilmente concederam as entrevistas, e ao neto Marcel Francelino da Silva, que colaborou com a foto utilizada na coluna.
 

 
Alexandra F. M. Ribeiro é doutoranda e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais e Alboni. M. D. P. Vieira é doutora e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais.