Mulheres Paranaenses: Marly, cinco décadas de trabalho no ramo da beleza

De um pequeno salão de beleza, a cabeleireira Marly hoje conta com uma rede de 30 estabelecimentos

Alexandra F. M. Ribeiro e Alboni. M. D. P. Vieira
Marly Stuhlert Minatti nasceu em 1951, no interior de Santa Catarina, no município de Braço do Trombudo e recebeu o título de Cidadã Honorária de Curitiba em 7 de maio de 2010, aos 59 anos. A honraria lhe fora concedida pelo reconhecimento de suas ações em prol dos curitibanos. Marly, atualmente, por meio de seus 30 salões de beleza, oportuniza trabalho diretamente para mais de 1.500 pessoas. O título a equiparou como conterrânea dos curitibanos, mas sua vinda para a capital paranaense ocorreu na sua adolescência, aos 15 anos de idade, com o intuito de facilitar o tratamento médico de sua mãe.
Os jeitos, o vocabulário, as técnicas e a postura do ofício de cabeleireira lhe foram passados por sua mãe Melita. Sozinha, a única opção, para a mãe de Marly, era levá-la para o trabalho em um salão de beleza próximo da residência. Marly ainda na infância desenvolvia pequenas atividades no salão e pouco tempo depois já aplicava químicas que deixavam os cabelos das clientes enrolados. Para as autoras, Marly relembrou em entrevista: “Durante a minha infância, minha mãe fazia muito permanente nos cabelos das clientes, ela colocava bigodinhos e eu ficava responsável por pôr os retângulos de papel alumínio por cima dos enroladinhos” (MINATTI, 2021). Em outra entrevista para Adriana Milczevsky, da RPC (2016), Marly recordou sobre a persistência de sua mãe no aprendizado do ofício: “Ela me forçava a ajudar e eu ajudava contra vontade. Imagina 10 anos de idade, você quer brincar, quer ficar com as amiguinhas”. Apesar de outros interesses da infância, a mãe de Marly valia-se de artifícios para barganhar com a filha:
Minha mãe foi muito inteligente na minha educação. Ela dizia: “os penteados que você fizer, o dinheiro é teu”. Assim, como morávamos no interior, quando tinha as festas de igreja, as pessoas queriam fazer o penteado comigo. Eu tinha que levantar às 5 horas da manhã de domingo para dar conta da clientela composta por seis a sete mulheres (MINATTI, 2021).
A convivência estreita com sua mãe e o cotidiano do salão imbuíram Marly nos modos de ser cabeleireira. Dia após dia, todo o conjunto de esquemas de percepções que lhe foi socializado acerca dos modos de ser cabeleireira foi sendo incorporado por Marly.
Sua mãe, muito atenta ao futuro da filha, instituiu para que ela aprendesse técnicas diferentes com outros profissionais e investisse em seu próprio negócio. Primeiro sua mãe conseguiu um estágio para que Marly aprendesse os segredos dos penteados bons e firmes no maior salão em Rio do Sul. Posteriormente, já em Curitiba, Marly encontrava-se em meio ao estudos de segundo grau, mas sua mãe a estimulou a fazer um curso no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), que envolvia a aprendizagem dos procedimentos realizados no salão de beleza, como corte, escova e coloração, além de analisar e conceituar o formato do rosto, dominar as técnicas de atendimento ao cliente e higiene do ambiente e procedimentos. Sobre o período em que fez o curso profissionalizante, Marly contou que se entusiasmou com os elogios que recebeu dos professores durante o andamento, pois era a segunda da classe, ressaltando que “perdia apenas para uma japonesa que era proprietária de salão” (MINATTI, 2021), o que a fez sentir-se motivada a dar continuidade na carreira. Depois, sua mãe insistiu para que ela abrisse seu próprio salão em vez de continuar a trabalhar em um estabelecimento no bairro Batel. Apesar de Marly considerar a grande responsabilidade do investimento, acatou os conselhos da mãe e saiu em busca de um local para abrigar seu salão de beleza.
Pelos exemplos expostos, compreende-se que além de passar naturalmente os esquemas da profissão para a filha, a mãe de Marly foi uma grande incentivadora de sua formação profissional e de seu empreendedorismo. A mãe de Marly faleceu no ano de 1987, entretanto, ela pontua a importância da figura materna em sua vida: “Ainda sinto a presença dela. Às vezes, quando tenho uma questão importante para resolver, sempre me recolho em um canto e lá a solução aparece” (MINATTI, 2021). Com todo o embasamento recebido desde a sua infância, coube a Marly colocar em prática o ¹habitus profissional.
¹ Habitus: “[…] sistemas de disposições duráveis e transponíveis (transferíveis), estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptados ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los, objetivamente ‘regulados’ e ‘reguladores’ sem em nada ser o produto da obediência a algumas regras e, sendo tudo isso coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um maestro” (BOURDIEU, 2013, p. 87).
Suas ações e seus experimentos ao longo das cinco décadas no ramo levaram-na de uma modesta sala à proprietária de uma grande rede de salões de beleza. Foi no ano de 1971 que Marly alugou uma pequena sala, pendurou uma placa na porta com a palavra “cabeleireira” escrita para indicar o serviço que lá eram prestados e ficava à espera da clientela que, no início, era escassa. Para a RPC (2016), Marly relembrou sobre seu início: “Ninguém me conhecia, mas eu ficava ali firme. No primeiro mês paguei aluguel que tinha que pagar, tinha uma prestação de secador que eu tinha que pagar, paguei tudo direitinho, mas o dinheiro não sobrava”.
Seis anos depois, casou-se com Jaime Minatti e alugaram o imóvel que funcionava como residência e salão, na Rua Estados Unidos, local no qual atualmente funciona a unidade Bacacheri. Com o passar do tempo, o espaço do salão foi aumentando na mesma proporção em que o da residência diminuía, depois que o salão se apropriou dos 200 metros quadrados de área construída e contar com mais de 40 colaboradores, momento em que foi necessário comprar os terrenos ao lado e aumentar as instalações. No ano de 1994, com seu marido trabalhando ao seu lado, Marly inaugurou o salão com 1.200 mil metros quadrados. Sobre as ampliações, para Crocetti (2010), Marly falou: “Até brinco que quanto mais estica, menor fica”. No ano de 2003, depois de várias ampliações na unidade Bacacheri, decidiram construir e abrir sua segunda unidade na Avenida Sete de Setembro, com 6,5 mil metros quadrados.
A marca consolidada em Curitiba e a abertura do segundo salão de beleza fizeram com que Marly desse mais responsabilidades às filhas no ofício da família. Em entrevista concedida para Rafael Costa, em 21 de julho de 2018, Marly contou que fez uma reunião com as três filhas – Michele, Gisele e Isabele – para que elas passassem a ocupar posições de maior responsabilidade nos salões. Marly relembrou que, no momento em que viu o tamanho do salão inaugurado na Avenida Sete de Setembro, sentiu que precisava da ajuda de toda a família para administrar o empreendimento com o mesmo padrão que ela almejava.
No entendimento de Marly, as filhas precisavam “saber tudo” que envolve a rotina de trabalho nos salões. Marly relembrou: “Eu havia ensinado para minhas filhas tudo sobre a tintura, o encaminhamento e o cuidado com as clientes e elas estudaram e se empenharam a apreender as especificidades na área do salão” (MINATTI, 2021). Porém, para a prole conhecer os mínimos detalhes do cotidiano da empresa, não demandou tanto esforço, afinal, suas filhas haviam se apropriado do habitus da profissão da mesma forma como Marly o incorporou por meio de sua mãe Melita. Marly reitera: “É bacana, elas dão continuidade e trazem novas ideias para o negócio” (MINATTI, 2021).
Com a abertura da marca Salão Marly para o mercado de franquias no ano de 2009, o trabalho só aumentou e precisou envolver os demais membros da família. No sistema de franquia, para que todos os salões tenham o mesmo sistema de atendimento, benefícios aos clientes e preço, é preciso muito treinamento e questões complexas administrativas envolvem todo o processo, atividades que demandaram mais tempo e horas de trabalho, o que fez com que os genros também passassem a se dedicar às atividades do ramo da beleza. Se há décadas os salões eram redutos femininos, agora não é incomum vê-los frequentando o ambiente, que se tornou um negócio lucrativo.
Atualmente, a rede do Salão Marly conta com 30 estabelecimentos, espalhados por Curitiba e Região Metropolitana, e “continua abrindo várias franquias e têm muita gente procurando trocar o nome do salão” (MINATTI, 2021). Em gargalhadas, Marly conta que já ouviu a frase: “Se alguém visitar Curitiba e não tirar uma foto em frente a um dos Salão Marly, não conheceu a cidade” (MINATTI, 2021).
Quando refletiu sobre sua trajetória, do início em um salão pequeno até o seu nome intitulando uma franquia, Marly expôs que tudo foi se transformando sem muitas projeções. Para Costa (2018), ela relatou que: “Na realidade, a gente nunca projetou nada. Foi acontecendo. […]. Foram passando os anos e cada vez aumentando mais. […] Então, até onde a gente vai chegar, eu não sei. Marly também rememorou a importância de toda a equipe que lhe acompanha há longa data: “Tive pessoas fundamentais e algumas delas trabalham comigo há mais de 30 anos” (MINATTI, 2021).
Durante suas cinco décadas no ramo da beleza, Marly contou sobre as tendências de moda que vivenciou e as gerações que atendeu. Desde que abriu, há 50 anos, acompanhou o crescimento das famílias, atendendo desde a mãe, passando para a filha, acompanhando a neta e, posteriormente, a bisneta de uma mesma genealogia. Marly declara que um dos motivos dessa fidelidade é o quanto sempre “paparicou” suas clientes, uma lição que aprendeu com sua mãe e que repassa para suas colaboradoras. Apesar de não estar mais em uma bancada e sim à frente da administração do trabalho de todos na rede, para Costa (2018), Marly relembrou: “Eu fui cabeleireira por 25 anos. Na época em que eu fazia cabelos, era aquela coisa: a cliente sabia tudo da minha vida e eu também sabia tudo da vida delas”.
Entretanto, a forma de arrumar o cabelo variou durante os tempos. A historiadora Carla Pinsky (2016) explica que nos anos de 1950 era cada vez mais presente a influência do cinema e os personagens de Hollywood tornavam-se referência para modas e comportamentos. Já a partir dos anos de 1960, as revistas passaram a dedicar mais espaço ao culto ao corpo, com matérias sobre aparência e saúde. As atrizes e os modelos, estampados nas telas de cinema e nas páginas das revistas, ditavam a última moda também para os cabelos.
Sobre os penteados e cortes de cabelo, Marly relembrou algumas tendências que surgiram durante as cinco décadas em que atua no ramo da beleza. Por volta dos anos de 1960, o permanente era o chique da época. Já nos anos de 1970, “as mulheres usavam muito bobe nos cabelos, às vezes, iam para casa com o cabelo enrolado. Era uma espécie de vício”. Em meados da década de 1980, “foi a vez dos cabelões armados, desfiadões, crespos. Todas as madeixas eram bem trabalhadas para chamar a atenção”. Nos anos de 1990, foi a vez de reviver os topetes e Curitiba ficou famosa por conta dessa onda. A década inicial do século XXI foi a vez do cabelo liso e os cabelos alvoroçados tornaram-se incomuns. Entretanto, ela salientou para Costa (2018): “Apesar de que os penteados da época em que comecei continuam ainda hoje, porque um cabelo bem penteado, um clássico bem-feito, não sai de moda”.
Marly também relatou que a vaidade e a variedade estão diferentes na contemporaneidade. As meninas começam a frequentar o salão de beleza cada vez mais novas e a juventude vale-se dos serviços de manicure e pedicure semanalmente. Em entrevista para Costa (2018), ela observou: “Tem muito mais vaidade hoje. A gente vê pelas crianças – as meninas de 4, 5 anos já chegam e falam: ‘Quero pintar minha unha, quero lavar o meu cabelo, fazer uma escova’. Com essa idade. Antigamente não tinha isso”.
Na primeira década do século XXI, o cinema, as revistas impressas e a televisão receberam um forte aliado na propagação da ditadura da beleza e de suas possibilidades. Com o advento da internet, foi possível o acesso a uma imensidade de cortes, estilos e tratamentos capilares. Marly complementou para Costa (2018): “Porque a internet também ensina muito. Elas acham uma coisarada no Facebook, nos Instagrams da vida”.
Existe também a relação entre a maior participação no mercado de trabalho pelas mulheres e sua procura por cuidar da aparência. Sobre a questão, Marly contou que antes dos anos de 1980, era nos finais de semana que o movimento acontecia e que com o passar dos anos a vontade de se arrumar foi aumentando. Marly complementa que “muitas mulheres trabalham fora, gostam de manter a aparência impecável, mas não têm tanto tempo para ficar no salão” (MINATTI, 2021). Marly conta que algumas clientes passaram a frequentar o salão em seus intervalos de almoço, o que a fez pensar em uma forma de atende-las ao máximo e em menor espaço de tempo. Em suas palavras: “Lancei a moda de fazer pé, mão e cabelo ao mesmo tempo e em uma hora a cliente estava liberada, com tudo arrumado. Uma cliente passou a contar para a outra e aumentou muito a clientela devido à rapidez no atendimento” (MINATTI, 2021).
Pinsky explica que o ideal de mulher, presente nos discursos, foram se transformando durante os tempos e, desde os anos iniciais do século XXI, “a ‘mulher maravilha’ – aquela que, ‘sem puxar o breque de mão’, corre ‘feito louca para dar conta da profissão, família e tarefas domésticas’ – ainda deve encontrar tempo para frequentar a academia de ginástica e o salão de beleza” (2016, p. 533) e passou a ser um modelo esperado e divulgado. De toda maneira, com a independência financeira, cada mulher passou a ter maior poder de decisão sobre o capital financeiro e Marly acredita que para algumas mulheres os custos com as visitas frequentes aos salões de beleza passaram a fazer parte da planilha do orçamento mensal.
Atualmente, Marly alterna seu cotidiano entre temporadas em uma chácara próximo da capital e seu trabalho na rede de salões. “Na realidade, já estou mais light”, disse ela em 2018. Quando está em Curitiba, ela narra que não consegue ficar em casa e o lugar no qual facilmente pode ser encontrada é em um dos salões da rede.
O sucesso de sua trajetória no ramo da beleza pode ser atribuído, dentre outros, à qualidade do trabalho, ao preço justo e à estrutura oferecidos na rede de salões. Marly reitera: “Nunca me incomodei com os outros estabelecimentos. Minha preocupação sempre foi com os meus salões e como eles poderiam ser melhores atendendo à clientela com preço justo e serviço de qualidade” (MINATTI, 2021). Com paixão por seu trabalho, Marly diz que gosta de conversar, que sempre acertou o que as clientes lhe pediam, que o salão é sua vida e que só irá parar de trabalhar quando morrer.
Agradecemos à Marly Stuhlert Minatti pela entrevista concedida em 23 de fevereiro de 2021 e pela autorização de uso da foto.
Rererências:



Alexandra F. M. Ribeiro é doutoranda e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais e Alboni. M. D. P. Vieira é doutora e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais.

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