História de Maria Sabina retrata as vivências das mulheres negras e pobres, que tiveram suas identidades forjadas e procuraram formas alternativas para reverter sua condição
Por Alexandra F. M. Ribeiro e Alboni. M. D. P. Vieira
Maria Sabina de Jesus Vianna nasceu em 10 de março de 1917, na cidade de Santo Antônio da Platina. Sua identidade traz o nome de seus pais, Jorge e Felisbina, dos quais nunca mencionou quaisquer informações até mesmo à sua filha Maria Aparecida, com quem viveu até a morte, em 6 de maio de 2000. Em entrevista concedida para as autoras, os filhos Antônio e Maria Aparecida contaram que a mãe foi criada pela família de dona Isoldina e seu Frederico. Nessa casa, ela recebia moradia e prestava seus serviços.
Maria casou-se, ainda muito jovem, com Damião, e dessa união resultou um filho. A tragédia, no entanto, acarretou o fim do casamento: o marido foi assassinado e a criança faleceu um ano após. Posteriormente, Maria voltou a morar com a família de dona Isoldina, local de onde novamente saiu, contrariando os conselhos da patroa, para casar-se com Leopoldo.
Durante a união com Leopoldo, Maria precisou lidar com a agressividade do marido, que se ampliava quando ele bebia. Os moradores locais conheciam a fama de “durão” e temiam os rompantes de Leopoldo. Em meio a gargalhadas, Maria Aparecida conta que seu pai era muito bravo, quando retornava do dia de trabalho e percebia que os vizinhos faziam festa e não os haviam convidado: ele pegava o porrete denominado Zé Cala-boca e se dirigia para o local, com o intuito de acabar com a festança.
Em uma modesta casa na beira da estrada, Maria morava junto de seu marido e dos quatro filhos: Antônio, Luiz, Maria Aparecida e Luzia. No entendimento do filho Antônio, era o pai que trazia, do trabalho como “enxada” em uma das fazendas locais, o sustento para a família. A criação de porcos e galinhas, o plantio para subsistência e o montante que ganhavam da colheita de grãos proporcionavam a fartura de comida na casa de Maria. Entretanto, a abundância não refletia a variedade. A filha Maria Aparecida relembra que o final de ano era o momento para saborear a macarronada… O pai retornava da cidade com macarrão, extrato de tomate, um pedaço de queijo e refrigerante, para que a mãe preparasse a iguaria.
A historiadora Maria Aparecida Moraes Silva explica que “Enxada era o trabalhador adulto do sexo masculino, acima de 17 anos de idade, com plena capacidade física e dedicado integralmente ao trabalho no cafezal e na roça” (2017, p. 557). A produção individual das famílias, que trabalhavam nas lavouras, tornava-se importante para os fazendeiros à medida que permitia pagar baixos salários aos trabalhadores.
Para incrementar o orçamento da casa, Maria trabalhava como lavadeira. Maria lavava as roupas na beira do rio e as colocava para secar nas residências daquelas que contratavam seus serviços. Dentre os fregueses, estavam Zelina e Santos, donos da olaria local. Maria, mulher de estrutura pequena em seus menos de 1,60 centímetros de altura, levava nas costas a trouxa de roupas sujas até o rio Ribeirão das Bicas. Ela deixava as meninas na beira do rio, enquanto cuidava das roupas. As peças eram esfregadas, fervidas em uma lata de querosene, enxaguadas nas águas correntes e em outro recipiente ficavam de molho no anil, para, depois, Maria torcê-las, utilizando seus fortes pulsos. Com o vestido todo molhado, retornava à residência das patroas para finalizar o serviço, momento de chacoalhar e estender as roupagens limpas. Sua filha relembra com orgulho: “a mãe era muito caprichosa com a roupa”.
Com os filhos crescidos, Maria pode buscar um trabalho mais rentável. Silva (2017) relata que com a modernização da agricultura, ocorrida nos anos finais da década de 1950, muitos trabalhadores das fazendas iniciaram seu êxodo para as cidades, fenômeno que levou à formação de trabalhadores temporários, denominados “boias-frias”. Tal acontecimento também promoveu o crescimento do número de mulheres que passaram a vender sua força de trabalho para os fazendeiros. Maria, antes das 5 horas da manhã, ia até a estrada principal esperar o caminhão para levá-la ao batente. Apesar de uma variação de grãos cultivados, era a lavoura de café que predominava na região. Serviços para os denominados “boias-frias” não faltavam e era possível escolher dentre as Fazendas Santa Rita, Jacutinga e Bom Jesus a qual ofertava o melhor pagamento. Geralmente, era a Fazenda Santa Rita a que melhor pagava a empreitada. Lá, Maria colhia os grãos de café e, ao final da jornada, recebia pelo montante que havia coletado.
Maria não foi alfabetizada, porém fez o que foi necessário para promover a educação dos filhos e até mesmo tomou medidas que levaram à separação entre eles. Maria enviou para Curitiba, um de cada vez, seus filhos para que trabalhassem em casas de família, as quais ofereceriam, em contrapartida, continuidade nos estudos e moradia. Sobre a relação entre sua mãe e a educação, Antônio declara: “Minha mãe, mesmo sem ter estudo algum, criou os quatro filhos e colocou todos nós na escola”. No entendimento de Maria Aparecida: “A mãe achava bonito quem era estudado e queria que nós estudássemos, por isso nos enviava para Curitiba”. Contrariando os desejos de Maria, sua filha Maria Aparecida não aguentou a distância e retornou para viver ao lado dela.
O falecimento de Leopoldo, por volta de 1970, fez com que Maria e sua filha pudessem pegar o trem rumo a Curitiba. Durante o dia, Maria trabalhava para as filhas de dona Isoldina e, à noite, ela e suas filhas Maria Aparecida e Luiza dividiam o quarto em uma pensão. Não passou muito tempo para que alugassem uma casa.
Aproximadamente uma década depois, Maria foi morar com sua filha. Enquanto a filha trabalhava em uma madeireira, Maria cuidava de sua neta Adriana. Maria Aparecida declara: “Minha mãe era uma bênção de Deus, cuidou da minha filha desde que nasceu”. Na compreensão de Antônio: “a minha mãe foi uma grande heroína, apesar de toda a dificuldade”.
A história de vida de Maria torna-se cúmplice das escrevivências propostas na literatura evaristiana. Soares e Machado (2017) explicam que Conceição Evaristo narra as vivências das mulheres negras e pobres, mostrando de que forma suas identidades são forjadas por dominações, separações, deslocamentos e estratégias de mudança da condição. Assim como as mulheres da ficção evaristiana, Maria procurou formas alternativas para reverter sua condição. Maria, que fora criada por estranhos, cuidou de seus quatro filhos, educou-os dentro dos valores que considerava importantes, enviou-os para longe, para que pudessem ter educação institucionalizada, e conseguiu ter seu sonho realizado, por meio da graduação em Pedagogia de sua neta Adriana.
Agradecimentos a Maria Aparecida dos Santos e a Antonio dos Santos, que gentilmente concederam as entrevistas que colaboraram com essa coluna.
Referências
- SILVA, Maria Aparecida Moraes. De colona à boia-fria. In: PRIORE, Mari Del; PINSKY, Carla Bassanezi (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2017.
- SOARES, Lissandra Vieira; MACHADO, Paula Sandrine. “Escrevivências” como ferramenta metodológica na produção de conhecimento em Psicologia Social. Psicologia Política, v. 17, n. 39, p. 203-219, 2017.
Alexandra F. M. Ribeiro é doutoranda e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais e Alboni. M. D. P. Vieira é doutora e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais.