Mulheres Paranaenses: Lizete, entre auditórios e quadras esportivas

Mulher negra, de recursos financeiros limitados e com um filho, Lizete demonstrou forte determinação para alcançar título de grande prestígio para a sociedade em que vivia

Alexandra F. M. Ribeiro e Alboni. M. D. P. Vieira
Lizete Marques nasceu em 12 de janeiro de 1938, na cidade de Curitiba. Por conta da separação de seus pais, Hermes Marques e Maria de Lourdes Lema Marques, Lizete, a mãe e a irmã Lenira foram morar na residência da avó materna. Lizete, em entrevista às autoras, declarou: “Eu era muito apegada a minha avó Amália e ao segundo marido dela, Daniel. Na casa de sua avó aprendeu a bordar e a fazer os serviços domésticos.
Na casa da avó, ouvir as radionovelas era passatempo de adultos. “Era proibido para criança”, disse ela. Entretanto, Lizete acompanhava as canções que ressonavam no rádio e foi motivada a procurar um local para se apresentar com sua voz. Ela contou: “Eu tinha uns oito anos quando mandei uma carta para o programa Clube Mirim, do diretor Aluísio Finzeto, e me chamaram para cantar em um domingo” (MARQUES, 2021). Depois desse momento, passou a apresentar-se até completar uns 20 anos. Disse ela: “Minha avó deixava, afinal, tinha começado ainda quando criança.
De acordo com Millarch, os programas de auditório entre os anos de 1940 e 1950 tinham as crianças como suas principais atrações. Em Curitiba, Aluísio Finzetto (1914-1976), o grande pioneiro do rádio e da televisão no Paraná, na antiga Rádio Guairacá, “A Voz Nativa da Terra dos Pinheirais”, apresentava o “Clube Mirim M-5”, que marcou época em nossa radiofonia” (MILLARCH, 1987). Os programas infantis foram se transformando com a popularização da televisão, com as mudanças no comportamento no quesito de lazer e entretenimento e com as transformações culturais.
Lizete também relembrou sobre sua educação institucionalizada. Estudou durante quatro anos em que estudou no Colégio Xavier da Silva, Lizete recordou da professora do 4.º ano primário – Marina Teixeira – pela qual todos tinham muito respeito e que era oriunda de uma família inteira de professores. Depois entrou para o Instituto de Educação, para fazer o Ginásio e Escola Normal. Aos risos, ela relembrou acerca de seu período na Escola Normal:

Naquele tempo a educação era muito diferente, o conhecimento era transmitido e você tinha que decorar. Não sei como não criei raiz naquela escola, eu era excelente em português, mas quando passava em matemática ficava em francês; quando era aprovada em francês era o latim que não me aprovava… Mesmo assim eu tenho boas recordações. Tive o professor de português Zacarias que era muito rígido, mas era um excelente professor (MARQUES, 2021).

A avó insistia para que Lizete estudasse, assim como a tia. Lizete é sobrinha de Enedina Alves Marques, “primeira engenheira diplomada na região sul do país, e a primeira engenheira negra do Brasil” (SANTANA, 2011, p. 73). Os conselhos da avó podem ser compreendidos por meio da explicação da historiadora Bebel Nepomuceno, quando afirma que a “ascensão social1 pela educação é sempre uma boa aposta”, mas, “desde de muito cedo, a população negra, e a mulher negra em particular, teve maiores dificuldades em integrar o quadro educacional” (2016, p. 389). Lizete comentou sobre a influência da tia em sua trajetória: “Eu não tinha muita proximidade com ela, a admirava, mas nunca pensava em estudar do mesmo jeito que ela estudou. Minha avó falava todo dia: ‘Estude como a Dininha; siga o exemplo da sua tia’. Eu não desejava ser professora, eu queria mesmo era ser artista” (MARQUES, 2021).
Antes de dar sequência a seus estudos no Ensino Superior, Lizete precisou lidar com a gravidez fora do casamento, no ano de 1961. Lizete não sofreu o abandono da família. Ela relembrou o apoio que recebeu por parte da mãe e da avó: “Minha mãe foi muito minha amiga e me apoiou. Minha avó, que estava em seu terceiro casamento, me falou: “olha, minha filha, eu não aprovo, mas você não foi a primeira e não será a última” (MARQUES, 2021). Quanto aos rótulos impostos pela sociedade, Lizete declarou: “Hoje é comum a mulher optar em ter ou não filho junto a um companheiro, mas naquele tempo a ‘mãe solteira’ não era bem vista (MARQUES, 2021).
Seu filho não a impediu de dar sequência à sua educação institucionalizada. No ano de 1963, a amiga Lenira incentivou ela e Lydia a fazerem o curso de Educação Física na Universidade Federal do Paraná. Lizete contou que precisou comprar o uniforme para frequentar o curso ministrado no Ginásio do Tarumã e que as aulas começavam as 7h10. Nas festas da universidade, Lizete manteve seu lado artístico vivo. “Eu só cantava por prazer e não ganhava nada com as apresentações, mesmo assim, quando tinha um showzinho, eu ia lá cantar”. Lizete contou que sua música preferida, desde sua infância, é Último desejo, de Noel Rosa.
Lizete formou-se no ano de 1967, no curso de Educação Física. Ter Ensino Superior no período era algo incomum à população e, em se tratando de mulher com essa titulação, os números diminuíam consideravelmente. O Censo Demográfico do Paraná do ano de 1970 mostra que o Estado possuía uma população de 6.865.928 pessoas, das quais 3.501.342 homens e 3.364.586 mulheres. Um total de 25.962 pessoas possuía Ensino Superior completo, sendo 20.018 homens e 5.944 mulheres, ou seja, apenas pouco mais um quinto dos titulados eram mulheres. Dessa maneira e apesar de os desafios encontrados, Lizete – mulher negra, de recursos financeiros limitados e com um filho – demonstrou forte determinação para alcançar um título de grande prestígio para a sociedade em que vivia.
Quanto à conclusão do curso de Educação Física, pode-se perceber que o número de profissionais na área era ainda mais inexpressivo, o que proporcionava maior valor ao título adquirido. No ano de 1970, o Censo Demográfico do Paraná demonstrou que havia 297 formados em Educação Física, dos quais 142 homens e 155 mulheres. Com o diploma em mãos, pôde se inscrever no primeiro concurso para professora promovido pelo Estado, que surgiu após sua graduação.
Lizete havia iniciado à sua carreira como professora no curso primário do Grupo Escolar Arthur Ribeiro de Macedo sete anos antes de ingressar como concursada. Com a aprovação no concurso, no ano de 1970, para atuar como professora de Educação Física em dois padrões, ela e seu filho mudaram-se para a cidade de Irati. Em 1973, Lizete retornou para Curitiba, a fim de trabalhar no Centro Federal de Educação Tecnológica (CFT). No ano de 1976, em um curso de extensão, recebeu o convite para trabalhar no Departamento de Educação Física do Estado do Paraná, local no qual permaneceu até sua aposentadoria. Lizete rememorou: “Aí minha vida melhorou muito. Eu fazia o que gostava, organizava eventos e jogos. Não era serviço, era diversão” (MARQUES, 2021).
Com a aposentadoria, Lizete pôde dedicar mais tempo para sua grande paixão: o canto. Ela declarou: “Entrei para um coral de 3.a idade mesmo com meus cinquenta e poucos anos. Em uma das apresentações, conheceu o maestro Wilson Santos, do coral da Polícia Civil do Paraná, e passou a integrar a equipe. Lizete contou que no repertório havia música popular brasileira, hinos pátrios e todo o coral viajava para se apresentar, com apresentações anuais no Paraguai.
Foi em uma das apresentações que ela conheceu seu companheiro Ozanan, no ano 2000. Lizete declarou: “Ele me conheceu num festival de música. Depois de um ano e meio sem nos falarmos, ele me ligou e pediu um encontro. Seguidamente combinamos de morar juntos” (MARQUES, 2021).
Lizete, aos 83 anos, considera-se realizada: “Já fiz tudo que tinha para fazer e as coisas que almejei eu tenho devido à minha força e à minha persistência, afinal, sou capricorniana e não desisto no meio do caminho”. Lizete é avó de Daniel, Alessandra, Isabelle e Carlos Eduardo. Passa todo o tempo em casa com seu companheiro Ozanan e sua gatinha Bianca.
Agradecemos à Lizete Marques pela entrevista concedida às autoras em 26 de fevereiro de 2021 e pela autorização de uso da foto.
1 “Na Colônia e no Império, a condição jurídica de escravo vetava a negros o acesso à educação formal; no pós-Abolição, por conta do racismo existente na sociedade, essa população encontrou muita dificuldade de obter um lugar nos bancos escolares da rede pública. Paradoxalmente, a educação foi sempre vista pelo segmento negro como um caminho eficaz, não só para a eliminação do preconceito racial como para a conquista de lugares menos subalternizados na sociedade” (NEPOMUCENO, 2016, p. 389).

REFERÊNCIAS

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico. Paraná: VIII recenseamento geral – 1970. v. 1, t. 19. Rio de Janeiro: IBGE, 1975.
MILLARCH, Aramis. Os tempos dos talentos infantis sem marketing. Estado do Paraná, caderno Almanaque, tabloide, 27 maio de 1987, p. 13. Disponível em: https://www.millarch.org/artigo/os-tempos-dos-talentos-infantis-sem-marketing
NEPOMUCENO, Bebel Carla Bassanezi. Protagonismo ignorado In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (org.). Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2016. p. 382-409.
SANTANA, Jorge Luiz. Enedina Alves Marques: a trajetória da primeira engenheira do sul do país na Faculdade de Engenharia do Paraná (1940-1945). Revista Vernáculo, n. 28, 2º sem/2011, p. 42-75). DOI: http://dx.doi.org/10.5380/rv.v0i28.33232
Alexandra F. M. Ribeiro é doutoranda e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais e Alboni. M. D. P. Vieira é doutora e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais.