Benditos Caminhos: A vulnerabilidade dos (in) visíveis a olho nu

A pandemia também deixa em crise a profissão mais antiga do mundo

Depois de uma temporada fora, a coluna Benditos Caminhos, da jornalista Érica Teixeira, volta a ser publicada. Com a ideia de abordar temas delicados, é impossível ficar indiferente ao tema proposto pela colunista. Nesta edição, são retratadas as dificuldades financeiras da profissão mais antiga do mundo. Quem quiser ajudar pode fazer doações até o dia 10 de maio ou participar de uma vaquinha virtual que está longe de bater a sua meta.

Foto: freepic.diller/FreePik

Por Érica Teixeira
Com a pandemia, o olhar da solidariedade voltou-se especialmente a idosos, população em situação de rua, profissionais de saúde, catadores de recicláveis e diaristas. O senso comum os enxerga como vulneráveis. E são. Todos somos. O ser humano tem a vulnerabilidade como parte constitutiva. Mais democrática do que qualquer vírus, atinge a todos. Uns mais, outros menos. E é ela que nos expõe a esse inimigo invisível capaz de gerar uma crise planetária.
Mas o mundo sempre teve seus inimigos invisíveis, aqueles com origem em outras variações e que, apesar de antigas, são resistentes até mesmo à vacinas. Um exemplo? A cegueira arbitrária do visível a olho nu. Essa doença provoca a invisibilidade que pode levar à morte e costuma ser implacável com a grande maioria das minorias, como as trabalhadoras e trabalhadores sexuais.
Tão vulneráveis quanto outros seres humanos, profissionais do sexo seguem invisíveis, ainda mais nesta época em que a combinação de contato físico e a proximidade respiratória (inerentes ao serviço) é quase proibitiva. E – não somente, mas especialmente – por essa condição vivem a escassez financeira de milhões de autônomos.
Curitiba totaliza 32 mil trabalhadoras sexuais – sendo cerca de 30 mil mulheres cis e duas mil travestis. Os dados são respectivamente do Grupo Liberdade e Grupo Esperança, ambas Organizações da Sociedade Civil (OSC). “A fome não espera e não tem sexo nem gênero. A maioria das travestis ainda vive da prostituição e agora não pode trabalhar”, frisa Liza Micelly, presidente do Esperança.
Desde que o distanciamento social foi integrado à rotina da cidade, há pouco mais de 40 dias, as vozes aflitas chegam às duas entidades de todos os lados. De proprietários de pontos de prostituição a trabalhadoras. Os primeiros dizem não suportar por muito tempo de portas fechadas. Já as profissionais, principalmente as das ruas do centro, pedem ajuda para comida, itens de higiene e limpeza, botijão de gás e aluguel. Algumas são idosas e sustentam filhos e até netos.
“As mulheres que moram e atendem nas pensões do centro cobram de 30 a 50 reais pelo programa. Parte do dinheiro fica como aluguel do quarto”, explica a presidente do Grupo Liberdade, Carmem Costa, que já na primeira semana do isolamento social recebeu doações de comércios de bairro, amigos e conhecidos para prover essas mulheres com cestas básicas. Rapidamente, a arrecadação tornou-se insuficiente para os pedidos. O jeito foi buscar apoio em outros meios.

Uma puta ajuda

Como alternativa para ajudar mulheres cis e travestis que vivem da prostituição, em março, as duas entidades lançaram a campanha Uma puta ajuda. Quem quiser contribuir pode fazer a doação de qualquer quantia acessando o site https://www.vakinha.com.br/vaquinha/mulheres-guerreira. Também estão sendo recebidos depósitos bancários diretamente na conta corrente (os dados estão no final do texto).
Simultaneamente, buscou-se apoio da Prefeitura de Curitiba. Porém, os 39 Centros de Referência em Assistência Social (Cras), da Fundação de Ação Social (FAS) estão fechados desde 23 de março. Manteve-se o atendimento telefônico. O serviço é a porta de entrada para indivíduos ou famílias em vulnerabilidade social. Mas, durante a pandemia, OSCs podem entregar uma lista especificando nome e endereço dos vulneráveis. “E, pelo critério técnico, avaliamos caso a caso”, disse a superintendente de gestão da FAS, Claudia Estorílio, em 27 de abril. Nesta data, a prefeitura reabriu os Cras, totalizando 1.956 atendimentos, por telefone ou pessoalmente.
As OSCs inscritas no Conselho Municipal de Assistência Social e cadastradas no Instituto GRPCom podem receber alimentos via campanha Pedreira do Bem. Promovida pelo Parque das Pedreiras, com apoio do Instituto GRPCom e da Prefeitura de Curitiba, a iniciativa começou em 8 de abril e se estende até o próximo domingo, 10 de maio (veja como doar no final do texto). Na primeira fase, a rede solidária arrecadou nove toneladas de alimentos. Deste total, o Grupo Esperança recebeu cinco cestas básicas na última semana. Liza Micelly informa que outras vinte chegaram pelo Disque Solidariedade, da FAS.
O número é insuficiente e a campanha Uma puta ajuda continua no ar. De 1º de abril a 4 de maio, foram arrecadados R$ 2.085,11 – ou seja, apenas 20% dos R$ 10 mil da meta. “Por mais que as pessoas usufruam do serviço, não estão colaborando nesta fase; então, fazemos um apelo emocional à sociedade”, diz Liza. Com as parcerias cada vez mais minguadas, as ONGs já lidavam com a falta de apoio em projetos. “Fica difícil a gente existir e, sem parcerias, é difícil sobreviver. Ainda hoje tem muito preconceito.”

Arriscar a vida por um bocado de pão

Ao preconceito, diante da pandemia soma-se outro obstáculo: as características da atividade. Excluindo o cibersexo, é intrínseco ao serviço sexual o contato físico e íntimo, a proximidade respiratória e a rotatividade de parceiros. Manter-se na ativa é assumir um altíssimo risco de contágio. Portanto, mesmo com o gradual afrouxamento do isolamento social, não se sabe quando será possível retornar ao trabalho em segurança.
Maria*, 54 anos, também não sabe. Asmática e diagnosticada com bronquite alérgica, ela pertence ao grupo de risco para covid-19 e está sem trabalhar a pedido das filhas. Mas, diz ser exceção entre as que ganham a vida no centro da capital. “Tenho colegas na rua. Tem gente que não pode ficar em casa. E vai arriscar a vida por um bocado de pão. Quem tá protegido é quem ganha bem. Eu sou brasileira e pobre.”
Ao longo de seis semanas de isolamento social, suas filhas e genros também viram os respectivos orçamentos domésticos minguarem. “Estava fazendo doces e salgados para vender mas, ainda não tenho clientela porque moro aqui faz pouco tempo”, comenta a moradora de Fazenda Rio Grande, região metropolitana de Curitiba.
A autônoma recebeu uma cesta básica e também a primeira parcela do auxílio emergencial, mas está apreensiva. “Recebi R$ 600 e pago R$ 450 de aluguel. Conforme for, não vou ter escolha.” O dilema de Maria é o mesmo da proprietária de um dos quase quatro mil pontos de prostituição da cidade, segundo dados do Grupo Liberdade.
Apesar de não serem citados explicitamente no decreto estadual 4.301/20, pensões, hotéis, boates, saunas, casas de massagem e apartamentos compartilhados para esse fim deveriam estar com as atividades suspensas desde 20 de março. E as trabalhadoras, desde as das ruas até as da prostituição de luxo, deveriam estar respeitando o distanciamento social.
A dona da boate, que não quis se identificar, diz ter consciência de que a pandemia é grave, especialmente para prostitutas, mas salienta que a suspensão do serviço não poderá se prolongar por muito tempo. “Uma mulher com três ou quatro filhos vai acabar correndo o risco (de infecção)”, alerta a empresária com sete funcionários. Entre eles, seguranças, copeiros, camareiras e garçons. Além dos salários, ela enumera outros gastos como manutenção do espaço e impostos. “A situação não está fácil”.
O estabelecimento existe há 15 anos e, mesmo antes do novo coronavírus, por questões econômicas, vinha perdendo clientes. Ao mesmo tempo, diariamente existiam candidatas a uma vaga. “Principalmente mulheres de 38, 40 anos que não acham emprego. Quando posso, indico alguns lugares para trabalharem.” A casa tem cerca de 50 profissionais do sexo. Para essas e milhares de outras, voltar ao trabalho nesta fase significa exposição de si, de clientes e das respectivas famílias. E, consequentemente, assumir um alto risco de adoecimento e morte.
UMA PUTA AJUDA
Depósito bancário
– Grupo Liberdade. CNPJ: 00.102.556/0001-99
CEF. Agência 0370. Conta corrente: 1.762-8
– Grupo Esperança. 000830150001-60
Banco Itaú (341). Agência 3721. C/C 17241-3
Site (boleto, cartão de crédito, paypal, picpay e cupom)
https://www.vakinha.com.br/vaquinha/mulheres-guerreira
PEDREIRA DO BEM
Doações de alimentos não perecíveis
Até esse domingo, 10 de maio, na Pedreira Paulo Leminski – Rua João Gava, 970 – Abranches (acesso pelo portão 1). Atendimento das 10h às 18h pelo sistema drive-thru
 

Érica Beatriz Teixeira é jornalista e mestranda em Educação. Dispensa redes sociais e privilegia a prosa o olho no olho. Deixou-se transformar no Caminho de Santiago de Compostela. E segue encantando-se pelos Benditos Caminhos vida afora.