Essa música tem história: Apesar de Você

Chico Buarque compôs “Apesar de Você”, um de seus maiores sucessos e que ironiza o governo militar como se falasse de um relacionamento amoroso

chico buarque
Capa do disco Chico Buarque, de 1978. Foto: Reprodução

Por Irma Bicalho
“Apesar de você” foi composta por Chico Buarque em 1970, no auge do governo militar. Foi lançada neste mesmo ano em um compacto simples, que por acaso, passou batido pela censura. Mas não demorou para que os militares se tocassem da ironia do compositor e o pior aconteceu, como será explicado depois.
Sob a censura do governo Médici, o lançamento oficial da música acabou sendo realizado oito anos depois do compacto, no final do governo Geisel. Ela faz parte do disco intitulado “Chico Buarque”, lançado em 1978.

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Quem faz uma leitura mais superficial da letra, pode pensar perfeitamente que se trata de um desabafo de alguém que está em um relacionamento tóxico, como se diz hoje em dia. Mas, não é preciso muita esperteza para notar os recados que Chico passa a cada estrofe da música. Acompanhe:
“Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não”
Ele já começa falando que ele não manda em nada e nem tem como mudar essa situação, não pode nem reclamar. O “você” é claramente o regime de ditadura, na época representado pelo presidente Médici, para quem a música é na verdade direcionada.
“A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão”
Neste trecho, Chico fala um pouco sobre a situação do povo brasileiro, que “fala de lado” para não ser percebido e abaixa a cabeça com medo da repressão e violência, típicas do governo da época. Médici (ou a ditadura), que inventou e impôs esse Estado (com letra maiúscula, representando o Governo), impondo a tristeza e a escuridão para o povo.
“Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão”
Aqui Chico menciona os vários crimes que foram “inventados”, nos Atos Constitucionais, que faziam inocentes serem presos por coisas simples, como expressar uma opinião diferente da do governo, por exemplo. O perdão, que ele reclama, se refere à falta de alternativa e defesa, que levava as pessoas ao cárcere, à tortura e à morte.
‘Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar”
O refrão mostra que mesmo diante de um cenário pavoroso, o governo não aniquilou a esperança de dias melhores. Em algum momento aquilo tudo irá acabar e a vida voltará a fluir normalmente. Repare que os versos “E a gente se amando sem parar” reforça a ideia de um relacionamento amoroso, uma artimanha para ludibriar a censura.
“Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar”
Neste trecho, o compositor deixa claro que toda a violência imposta ao povo não vai ficar barato, alguém vai pagar por isso. E vai “pagar dobrado”. Chega a ser uma espécie de ameaça, bem ousada para a época. O termo “samba no escuro” diz respeito às músicas censuradas.
“Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente”
Aqui, Chico compara a força da natureza com a reação do povo contra a truculência dos militares. A violência, a censura, a tortura não podem impedir as flores de nascer, nem o raiar do dia. A liberdade virá de qualquer jeito, a voz do povo será ouvida.

O que aconteceu com essa música

Em 1970, quando Chico lançou o compacto com “Apesar de Você”,  a música foi um grande sucesso no país, vendendo 100 mil cópias e tocando em todas as rádios.

Ouça a gravação original aqui

Em janeiro do ano seguinte, a música foi regravada pela cantora Clara Nunes, que ingenuamente acreditava ser “uma letra sobre uma briga entre namorados”.

Um mês depois, o jornalista Sebastião Nery, do jornal “Tribuna da Imprensa”, publicou uma nota elogiando a música. Ele dizia que seu filho e os colegas dele a cantavam como um hino nacional. Aí, o alarme dos militares disparou. Nery foi chamado para depor na polícia e a execução pública da canção foi vetada pelo governo, que finalmente compreendeu seu significado. Os militares invadiram a gravadora e destruíram as cópias dos compactos. O censor que aprovou a canção foi punido.
Mais tarde, Clara Nunes foi obrigada a gravar o tema das Olimpíadas do Exército de 1971, como uma compensação ao regime militar e um castigo para ela, claro. Que situação!
Chico foi interrogado para esclarecer quem era o “você” mencionado na música. Ele respondeu graciosamente: “É uma mulher muito mandona, muito autoritária”. Não colou. Chico Buarque ficou com o nome manchado. Nada mais que ele fazia era liberado pela censura, tendo que usar até pseudônimos para aprovar suas composições, como Julinho de Adelaide e Leonel de Paiva. O que funcionou por certo tempo, até ele ser descoberto novamente.
Com o passar do tempo, a canção se tornou mesmo uma espécie de hino, representando a resistência de um povo sofrido, mas que não perdeu a esperança e a vontade de lutar pela sua liberdade.

E hoje? Em pleno ano de 2023, meio século depois de ter sido lançada, você acha que “Apesar de Você” tem alguma coisa em comum com a censura que vivemos? Salve, Chico!

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