Os Bocas Negras do Colorado: participação, solidariedade e resistência na história do Carnaval paranaense

O livro “Colorado – A Primeira Escola de Samba de Curitiba” revela uma cidade desconhecida por muitos

Por Carlos Mariano Filho
Nas minhas idas e vindas a Curitiba, tive a alegria, como pesquisador de carnaval, de ter contato com o livro do João Carlos de Freitas, “Colorado: A Primeira Escola de Samba de Curitiba, Curitiba: Edição do autor, 2009”. A obra conta a épica, mítica e singular história dos Bocas Negras, sambistas afrodescendentes liderados pelo carismático Maé da Cuíca, como era conhecido Ismael Cordeiro, que fundaram, no pós-guerra, a primeira escola de samba de Curitiba, a Colorado.
A história social marxista inglesa nos ensina que, quando nós, pesquisadores do passado, privilegiamos protagonizar a ação histórica dos “debaixo” na pesquisa social, ampliamos a lente de visão da história, bem como modificamos as tramas, estratégias e resultados construtores do contexto geral. É justamente isso que o pesquisador João Carlos de Freitas faz em seu livro, que narra a singular história da luta de negros curitibanos na defesa da sua cultura ao criarem a primeira escola de samba de Curitiba, uma cidade historicamente preconceituosa e de maioria branca.
A sociedade curitibana ao longo de sua trajetória sempre diluiu a presença do negro na sua fundação e no seu dia a dia, como também na importância da negritude na história do Paraná. Uma parte dessa sociedade nunca escondeu um certo orgulho de Curitiba ser uma cidade “quase 100% branca” e que por isso, deu certo. Um cínico racismo que foi, infelizmente, incorporado também por boa parte de pesquisadores, educadores e intelectuais que construíram um saber que anulava a presença e participação do negro na comunidade curitibana e paranaense.
No primeiro capítulo do livro, denominado “O negro na sociedade curitibana”, Freitas mostra, com dados históricos, como é mentirosa a ideia de que Curitiba e o Paraná são locais onde a presença do negro foi quase nula e, portanto, seriam regiões brancas de uma parte de um “Brasil europeu”.
Dados históricos contidos nesse capítulo revelam que o Paraná tinha, na época do sistema escravista, um dos principais portos do Brasil, onde se deu a circulação de negros no tráfico de escravizados.
Otávio Ianni, intelectual da USP, afirma ser significativo o número de negros na formação das classes sociais no Paraná. Ele pondera que o panorama visto na capital paranaense, em relação à composição sociorracial no período escravista, é o mesmo do restante do Brasil, ou seja, predominava uma economia dependente da mão de obra escrava negra. Embora esse contingente seja menor do que outras províncias do Brasil da época, Ianni nos diz que a quantidade de negros que aportaram no porto do Paraná alcançava 34% do total de habitantes.
Portanto, a narrativa de que o Paraná é um estado branco, que tem uma história fora da realidade brasileira, de colônia, de exploração baseada na exportação de matérias-primas e uso de mão de obra escrava negra-indígena não é só uma falácia, mas também uma ideologia racista que perdurou e alimentou uma política de segregação racial no Sul do Brasil.

Imagem de 1822, atribuída a Debret, em que aparece um pedreiro a trabalhar na construção do convento dos Jesuítas, atual ruínas do São Francisco.

O fato histórico do Paraná ter recebido uma quantidade de brancos europeus vindos, principalmente, do Leste da Europa no período da Guerra Mundial, não livra, de maneira nenhuma, o Paraná, no contexto econômico do início do século XX, de ter usado mão de obra de negros recém libertos do sistema escravista.
No livro “Raças e Classes Sociais no Brasil”, Ianni nos alerta que a economia paranaense absorveu, de forma gradual e sistemática, tanto as forças produtivas negras recém libertas da escravidão, como também o excedente de origem europeia. Portanto, o fenômeno dialético da convivência racial comum em toda a sociedade brasileira foi também uma realidade no Paraná, como mostra a pesquisa. A partir do advento da Primeira República, o negro vira um problema para as elites racistas paranaenses. Aí vem a questão: como usar e depender do negro como força produtiva e, ao mesmo tempo, aceitar as marcas e inventividade da sua cultura? É nesse período que se acentua a ideologia de banir o negro da narrativa da história curitibana e paranaense. E, contraditoriamente, é no pós-guerra, precisamente no carnaval da Guerra de 1945, que Maé da Cuíca, sambista branco de Curitiba, se junta aos bambas Bocas Negras, que faziam samba na extinta Vila Tassi. E, inspirado na síncopa da malandragem carioca estaciana, mangueirense e portelense, criam a primeira escola de samba de Curitiba, a Colorado.
A existência e sucesso da Colorado mostra que, na organicidade da vida, o negro paranaense se fez existir, lutou e realizou com solidariedade e resistência sua participação na maior festa popular do Brasil: o Carnaval. Mas, essa existência foi por muito tempo negada por uma boa parte da opinião pública de Curitiba e paranaense. Daí, a importância histórica e valor sociológico da obra de João Carlos Freitas (veja aqui a live do sambista e escritor para o coletivo Movimento Gota D´Água).
Colorado: Uma história de negritude, ritmo e resistência no carnaval de Curitiba
Quem diria que a Vila Tassi ia se
Acabar
Quem diria que somente três casas
Iam ficar
Elas ficaram pra mostrar no carnaval
Que o samba lá da Vila
Sempre tem seu lugar
Os lindos versos do samba de 1946 mostram a origem popular e a luta de classes presente na história moderna de Curitiba. No final da década de 1940, a Vila Tassi, comunidade onde nasceu a Colorado, foi exterminada pelas ditas “reformas modernizantes” das grandes cidades brasileiras. A partir de então, a Vila Tassi se torna outra Vila: a Capanema. O “bota abaixo” das casas dos trabalhadores e trabalhadoras pobres de Curitiba foi patrocinado pela especulação mobiliária, já naquela época tão presente na cidade. Mas, foi ali, na antiga Vila Tassi, onde morava uma numerosa comunidade negra, que nasceu o samba de batida inconfundível da Colorado.
Agora, na Vila Capanema e, mesmo perseguidos e marginalizados, os negros e o samba da Colorado não desistem de levar adiante sua cultura e seu ritmo singular para mudar o elitista carnaval curitibano.
Tendo no seu tecido social formador, a mão de obra de pobres de maioria negra que trabalhava na rede ferroviária, a Colorado vai romper durante a década de 1950 com o carnaval branco, estilo europeu. A negrada em ritmo de batuque, lundu, maxixe vai rompendo, com as bênçãos dos orixás, as barreiras do preconceito e conquistando seu espaço, com seu samba inspirado nos bambas dos morros cariocas, mas com muita autenticidade e inovação.
No seu histórico como escola de samba, a Colorado conquistou somente três vezes o título de campeã do carnaval curitibano: 1964, 1972 e 1976. Mas, apesar dos poucos títulos e muitos segundo lugares, o que marcou de verdade a trajetória da escola, de 1946 até 2001, quando desfilou pela última vez e enrolou, infelizmente, o seu pavilhão vermelho e branco, foi a ousadia de botar na marra a cultura do samba negro curitibano na pista e, assim, mostrar para a parte preconceituosa da sociedade paranaense que existia, sim, negro na cidade e mais do que isso, que essa negritude tinha valor e criatividade para mostrar sua rica cultura e história.
“Colorado: A Primeira Escola de Samba de Curitiba” resgata a história dos sambistas afrodescendentes que criaram a primeira escola de samba de Curitiba. Foto: Carlos Mariano Filho

Contudo, o maior legado deixado por essa escola de samba pobre, de origem operária e negra, foi o samba e sua batida da bateria, mostrando que Curitiba teve e tem, de fato, a presença afro em seu território e deixou e deixa marca em sua história. Maé da Cuíca, branco fundador da Colorado, tem como nome de batismo Ismael, o mesmo de Ismael Silva, criador da primeira escola de samba do Brasil, a “Deixa Falar”, do bairro do Estácio, do Rio de Janeiro. Essa não é somente uma feliz coincidência de nomes, mas também uma coincidência pelo gosto do samba e uma aproximação entre Curitiba e o Rio de Janeiro.
Maé da Cuíca, cercado por negros talentosos e dispostos a mostrar que existia samba e ritmo em Curitiba, vão, em cinco décadas de história do carnaval paranaense, mostrar aquilo que muitos racistas não queriam enxergar: que Curitiba, como todo o Brasil, tem sua África na sua cultura popular. E não só isso: a existência e exuberância do samba e bateria da Colorado revelam uma Curitiba “carioca”, desmistificando que é apenas uma cidade fria como as da Europa e, no caso do território nacional, que tenha sofrido apenas influência paulistana.
Talvez o maior troféu que a Colorado tem na sua história rica e singular é ter ganho no Rio de Janeiro o festival de samba patrocinado, nada mais, nada menos, pela Estação Primeira de Mangueira. Com as bênçãos de Cartola e Carlos Cachaça, os Bocas Negras ganharam o festival dentro da Verde Rosa com o bonito e poético samba “Não vou subir o morro”, derrotando compositores de peso do samba carioca, como Mauro Duarte, parceiro de Paulo Cesar Pinheiro e compositor da guerreira Clara Nunes.
Aliás, a relação da Mangueira com a Colorado é mais profunda do que parece ser. Sua bateria, maior relíquia da escola, tinha uma batida parecida com a da verde e rosa, sem surdo de resposta. O que deu à orquestra de percussão dos bambas da Vila Tassi uma velocidade que, para a época, era algo inovador e contagiante. A performance da bateria da Colorado lhe dava sua grande glória como escola de samba e mostrava ainda mais a força e criatividade do negro curitibano, que embora fosse influenciado por sambistas cariocas, que vieram morar em Curitiba em busca de emprego na malha ferroviária, inventaram um estilo próprio e inédito de tocar samba na cidade. A Colorado, inclusive, ganha a mesma fama da Mocidade Independente de Padre Miguel do Rio de Janeiro, que antes da chegada do patrono do jogo do bicho, Castor de Andrade, era conhecida como uma escola cercada de uma bateria, já que era comandada pelo genial Mestre André, o inventor da famosa paradinha nas baterias de escolas de samba. No tempo do Mestre André, e antes do Castor, a Mocidade era conhecida pela força da sua batida e não pelo luxo de suas fantasias. A querida Colorado viveu e morreu pobre e sua grande fama foi a força do seu batuque negro de sua bateria.
Hoje, a Colorado, infelizmente, não existe mais, mas seu legado está aí para ser estudado e defendido pelos negros e sambistas de Curitiba. Talvez essa seja a maior virtude do grande livro de Freitas: desvendar e revelar essa história de luta e libertação do povo negro de Curitiba, que embora seja minoria, construiu socialmente e culturalmente a história de Curitiba e merece ser sujeito dela.
Referências bibliográficas

  • FREITAS, João Carlos. Colorado – A Primeira Escola de Samba de Curitiba. Curitiba: Edição do autor, 2009.
  • IANNI, O. Raças e Classes Sociais no Brasil. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1972.
  • REVEL, Jacques. Jogos de Escalas – A Experiência da Microanálise. Rio de janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1998.

 
Carlos Mariano Filho, mais conhecido por professor Mariano, é historiador, professor de História, Sociologia e Filosofia da Rede Pública do Rio de Janeiro. Pesquisador de escola de samba desde 2000, sua primeira lembrança de encantamento do carnaval foi, ao ver na casa da sua tia Ana (uma espécie de camarim de desfile de carnaval), o ritual de preparação das baianas da Vila Isabel, com suas saias rodadas, miçangas e devoção à arte de rodar.

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