Odelair Rodrigues, uma atriz completa

Mais do que uma das pioneiras da televisão paranaense, Odelair Rodrigues foi uma atriz sensível, com fala rápida, que chorava de verdade imaginando-se no personagem

Alexandra F. M. Ribeiro e Alboni. M. D. P. Vieira

Odelair Rodrigues nasceu em 27 de janeiro de 1935, filha de Alice Costa da Silva, empregada doméstica, e de Joaquim Rodrigues da Silva, 3º sargento da Polícia Militar do Estado do Paraná. Em entrevista bem-humorada a Wille (ORADIODOPARANÁ, 2013), Odelair contou que seu nascimento foi uma tragicomédia, porque começou a nascer em casa e terminou na maternidade. “Dona Alice Costa da Silva, com as contrações cada vez mais fortes, sentiu que tinha chegado a hora. A parteira foi chamada, começou o trabalho de parto, mas o bebê não nascia” […] “Foi preciso chamar um carro de praça para levá-la ao Hospital Victor Ferreira do Amaral. Desmaiada, parecia antecipar a morte” (LEITE; GEMAEL, 2018, s.p.). Do nascimento a fórceps, ficaram pequenas marcas na testa de Odelair, que a acompanharam por toda a vida.

Foi registrada no cartório com o nome de Odelair, quase cinco meses depois, no dia 14 de junho. Essa data ficou sendo sua data oficial de nascimento. Todos a chamavam de Delair. Só foi descobrir que o nome correto era Odelair quando, um dia, viu a certidão de nascimento… O mesmo aconteceu com sua irmã Dagmar, que havia sido registrada como Adagmar.

A mãe criou as filhas sozinha, porque o pai, Joaquim, gostava da boemia e o soldo que ganhava não era suficiente para manter suas noitadas e a família. Por diversas vezes a família se mudou. Moraram na rua Marechal Floriano, depois na rua Ivaí, num bairro em São José dos Pinhais e, por fim, no Alto da Rua Quinze, no local onde atualmente está o Hospital XV – Clínica de Fraturas e Ortopedia, em frente a uma fábrica de balas. Certo dia, depois de muitas traições, o pai saiu de casa para nunca mais voltar. Constituiu nova família e teve dois filhos homens. Para Alice, foi o início de uma nova fase, com a responsabilidade de educar e sustentar as filhas. Sempre as estimulou a irem à escola, a aproveitarem bem os estudos, a fazerem novas amizades, dizendo-lhes que precisava trabalhar para mantê-las e que não teria tempo para briga de criança. Se brigassem, que acertassem as diferenças na rua porque, se chegassem em casa chorando, iriam apanhar novamente. Odelair e Adagmar deveriam aprender a viver. Em diversas oportunidades, Odelair mencionou que, apesar desses percalços, sua infância foi feliz, como a das outras crianças. (LEITE; GEMAEL, 2018).

Aos sete anos, aluna do Grupo Escolar Xavier da Silva, na ocasião da comemoração do fim do ano letivo, uma professora entrou em sala e perguntou se alguém sabia dançar, cantar, declamar, sapatear ou outra atividade artística. Odelair levantou a mão, decidida, e cantou um sucesso da época, “Vatapá”, de Dorival Caymmi, que ela sabia de cor e salteado. Foi imediatamente aprovada para sua primeira aparição no palco, que ela nunca abandonou. Durante sua vida, o palco e a plateia exerceram verdadeiro fascínio sobre ela.

Odelair concluiu o curso primário no Grupo Escolar Vila Mimosa, diplomando-se em 7 de dezembro de 1948. O curioso é que, do diploma, consta seu nome como Delair e a data de seu nascimento como 27 de janeiro de 1935, diferente de seu registro civil. Contudo, ela o assinou como Odelair…

Suas notas na escola eram excelentes, exceto no comportamento, em que ganhava zero. Isso porque brigava bastante, principalmente em função do bullying que sofria por sua cor. Uma última briga que teve e que foi memorável ocorreu quando de seu ingresso no ginásio do Instituto de Educação. Ao passar no exame de admissão, comprou de segunda mão todo o material exigido pelo ginásio. Saindo para a aula, com saia azul-marinho pregueada, sapato preto, meias brancas, blusa branca e gravata vermelha, com as iniciais GP (Ginásio Paranaense), com os livros embaixo do braço, ouviu: “Olha lá uma negra” e, postados na frente da casa, do outro lado da rua, estavam o filho do dono da fábrica de balas e mais quatro amigos. Atravessaram a rua e começaram a segui-la, dizendo “negra, preta, tição” e ainda “olhe lá uma nuvem escura, vai chover”. Odelair foi seguida por eles até a rua Ubaldino do Amaral, com a mesma cantilena. Quando voltou da escola, lá estavam eles novamente e repetiram a cena até ela chegar em casa. Isso aconteceu por muitas vezes até que, um dia, ela decidiu “acabar com os caras”. Como eram cinco e não era possível bater em todos numa única vez, decidiu pegar um por um, iniciando pelo filho do dono da fábrica de balas, que era “o chefe da quadrilha”. Em entrevista a Wille (ORADIODOPARANÁ, 2013), narrou que os meninos estavam no portão da casa do rapaz e ela esperou que saíssem. Quando ficou apenas o filho do dono da fábrica de balas, deu um pontapé no portão, quebrando-o. O menino desceu da bicicleta, ela deu um pontapé na bicicleta e ele caiu no chão. Quis se levantar e dizer alguma coisa, mas ela não permitiu, agarrando-o pelo pescoço e perguntando “Quando é que vai chover?”, ao tempo em que batia nele. Bateu tanto que o rapaz desmaiou e ela, então, foi para casa. Quando sua mãe chegou, estava estudando história geral – os fenícios, lembrou, com cara de anjo. Foi quando bateram à porta e ela ouviu uma voz grossa dizendo à sua mãe: “A senhora é a mãe daquela morena que mora aqui? Porque meu filho está no hospital. Ela quase matou meu filho”. Ao que sua mãe respondeu: “Ah, quase matou seu filho? Que pena… Porque eu teria matado!” A partir daí, os meninos não mais a perseguiram e ela passou a ser respeitada na região.

Odelair permaneceu no Instituto de Educação até a inauguração das novas dependências do Colégio Estadual do Paraná (CEP), em 29 de março de 1950, quando solicitou transferência para o CEP. Ali, encontrou espaço para dedicar-se aos esportes que apreciava: vôlei, basquete, atletismo. Gostaria de ter praticado natação, mas lhe faltou dinheiro para o maiô. Aprendeu a dançar samba, baião, frevo e maracatu. Por seu entusiasmo, foi escolhida mascote das Olimpíadas Colegiais e Ginasiais, evento anual criado em 1938. E foi no CEP que começou a se envolver no teatro e conheceu Ary Fontoura, René Ariel Dotti, Sinval Martins e outros futuros atores.

Um dia, Ary Fontoura perguntou a Odelair se ela queria fazer um teatro de verdade, mencionando que tinha uma companhia de teatro amador. Como explica Vilhena (2008, p. 42): “o teatro brasileiro entre as décadas de 1940 e 1960 foi construído por companhias de atores que buscavam novas formas de pensar, fazer e ver o teatro”. O texto escolhido por Ary Fontoura para ser levado ao palco foi “A mulher sem pecado”, primeiro texto teatral de Nelson Rodrigues, que cumpriu temporada de três dias no Colégio Estadual do Paraná. Odelair havia sido responsável pela pontuação. Na sequência, Ary escolheu outro texto: “Sinhá moça chorou”, do gaúcho Ernani Fornari, e convidou Odelair para que trabalhasse na peça.

Para isso, teve que solicitar autorização da mãe, dona Alice, que tinha plena consciência “do preconceito que a sociedade reservava aos artistas, especialmente sobre as atrizes” (LEITE; GEMAEL, 2018). A conversa não foi fácil, mas ela concordou, não sem antes estabelecer as condições: como o ensaio era nos sábados e domingos, no Instituto de Educação do Paraná, das duas às quatro, às quatro e quinze ela deveria estar em casa… Sua personagem era Balbina, uma das escravas. Ary Fontoura e René Dotti também desempenharam papéis de escravos, todos pintados de preto. A pintura era feita com rolha queimada… A peça foi um sucesso e marcou a estreia de Odelair nos palcos, em 1952.

Concluído o ginásio, Odelair ingressou no curso noturno de Contabilidade, na Escola Técnica de Comércio anexa à Universidade Federal do Paraná. Ao se formar, procurou emprego por três meses, mas quando chegava às empresas, diziam que a vaga havia sido preenchida. Em face disso, decidiu trabalhar como empregada doméstica, enquanto fazia teatro.

Na citada entrevista a Wille (ORADIODOPARANÁ, 2013) contou que trabalhava em casa de uns portugueses e que, ao ser eleita a Melhor Atriz do Ano, em 1956, seu patrão viu sua foto na primeira página do jornal e a chamou: “Esta pessoa que está aqui no jornal não é a senhora?” Pouco tempo depois, conseguiu emprego em uma empresa, com carteira profissional assinada e o registro: faturista. Quando deixou a empresa, era caixa geral da firma. Mas na ocasião, o teatro já lhe propiciava suficiente renda para que pudesse se dedicar apenas a ele.

Em 1957, Odelair casou-se com Stanislau Costa. O casal foi morar com dona Alice e sua vida transformou-se num tormento, porque o marido era um homem violento. Logo se separaram e Odelair foi morar num camarim do Teatro de Bolso, na praça Rui Barbosa. Foi nos camarins do Teatro de Bolso, em 1959, que conheceu aquele que viria a ser seu segundo marido: Paulo de Avelar, nome artístico de José Boaventura Barbosa, que trabalhava no Banco do Brasil e era locutor esportivo da Rádio Clube Paranaense. A relação entre os dois se estendeu por toda a vida. Odelair não teve filhos.

Com o apoio de Ary Fontoura, diretor de radioteatro, ingressou na Rádio Colombo. Ali, era atriz, cantora e humorista, fazia de tudo um pouco. À época, as novelas de rádio despertavam enorme interesse e o rádio teatro era a grande sensação na cidade.

Em 29 de outubro de 1960 foi inaugurada a primeira emissora de televisão do estado: a TV Paranaense. Dois meses depois, foram ao ar as primeiras imagens da TV Paraná – Canal 6, coligada às Emissoras Associadas do empresário Assis Chateaubriand. O Canal 6 integrava a rede Tupi e tinha como símbolo um curumim. A televisão foi muito bem-vinda para os artistas. Os atores de teatro foram convidados para participar da abertura do Canal 6. Explicam Leite e Gemael (2018, s.p.) que “Televisão era novidade que se propagava, mas ainda restrita a uma parcela do público que tinha condições financeiras para comprar um aparelho. Não era barato, o que tornava uma antena de TV no telhado da casa motivo de status”.

Ary Fontoura e Odelair estavam associados um ao outro. Onde um estava, o outro também estava. Juntos, eram sinônimo de humorismo, por exemplo no quadro em que Odelair representava o Delegado Alcebíades, o Bide, secretário particular do famoso Doutor Pomposo Ribeiro, criado por Ary, no “Tele-Show CCI”. O horário nobre da televisão estava aberto aos artistas locais, antes do surgimento do videoteipe, que “foi um golpe mortal para as produções locais de dramaturgia” (LEITE; GEMAEL, 2018), ao privilegiar as produções importadas de outros estados. Em 1971, a TV Paraná demitiu todos os atores.

Odelair participou de várias novelas (“Escrava Isaura”, “Vida roubada”, “Estranha melodia”), mas vale a pena destacar sua extraordinária caracterização como “Mamãe Dolores”, no célebre romance “O Direito de Nascer”, com 260 capítulos, sob a direção de Roberto Menghini, que lhe deu o Prêmio Curumim 1966. Segundo Faria (1966), “pondo em ação toda a sua arte e talento, oferece[u] ao público telespectador a imagem exata da querida ‘Mãe Preta’ criada por Caignet”. Nesse papel, Odelair, que era humorista emérita, transformou-se, expondo toda a dramaticidade da personagem. A história conta o drama da jovem Helena, seduzida pelo namorado que não assumiu o filho, e que deu à luz num lugar distante. Trata da babá, Mamãe Dolores, fugindo desesperadamente com a criança, porque o avô não queria o menino vivo. Entrevistada pela revista TV Programas, Odelair mencionou que não entendia como essa telenovela havia tido tanta aceitação, uma vez que a considerava “superada, tema superbatido” (FARIA, 1966).

No cinema, Odelair participou do longa-metragem de Sylvio Back, “Lance Maior” (1968), buscando uma nova experiência, explorando outro tipo de linguagem. Em seguida, de “Entardecer de ilusões e de “Quanto vale ou é por quilo?”.

Quando Ary Fontoura decidiu trabalhar no Rio de Janeiro, Odelair foi com ele, ficando quase um ano lá. Contudo, não deu certo. Não sentiu espaço para o trabalho dela e o marido, bancário, não havia conseguido transferência para o Rio, pedindo-lhe que retornasse. Em face disso, acabou voltando.

No Paraná, continuou seu trabalho na televisão e no teatro. Viajou por vinte anos, no grupo de Roberto Menghini, pelo interior e pelos estados vizinhos, com o apoio do Lions Clube e do Rotary. Trabalhou também como garota propaganda em Pernambuco, na Bahia e em Minas Gerais. No Paraná, a jingle que mais se destacou foi o do Café Damasco, no qual cantava “Café Damasco faz o povo inteiro mais feliz, Café Damasco todo mundo pede bis”.

Odelair foi uma atriz sensível, com fala rápida, que chorava de verdade imaginando-se no personagem e sentindo sua dor e desespero. Durante sua vida, sentiu muito de perto o preconceito racial, embora nunca tenha deixado que ele interferisse nos seus projetos. Seu lema era “ser sempre alegre, com muito boa vontade, não desistir com a primeira porta que fecha e saber com certeza o que quer” (ORADIODOPARANÁ, 2013). Em reconhecimento ao seu trabalho, recebeu muitos prêmios e foi Bicho do Paraná em 1990.

Faleceu no dia 1º de julho de 2003, vítima de uma parada cardiorrespiratória. Seu corpo foi sepultado no Cemitério da Água Verde, em Curitiba.

Para saber mais

  • DRAMATURGIA BRASILEIRA “IN MEMORIAM”. Disponível em: https://www.facebook.com/dramaturgiabrasileirainmemoriam
  • FARIA, Hamilton. A nossa Mamãe Dolores. TV Programas. 22 ago. 1966, s. p.
  • LEITE, José Carlos Corrêa; GEMAEL, Rosirene. Odelair Rodrigues. Curitiba: Edição do Autor, 2018.
  • ORADIODOPARANA. Memória Paranaense. Odelair Rodrigues 1. Fundação Inepar. 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ihu5LgETSTs
  • ORADIODOPARANA. Odelair Rodrigues 2. 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Qw9poC3_A0I
  • VILHENA, Deolinda. Bibi Ferreira? Bem, Bibi é um caso à parte. ANDRADE, Ana Lúcia Vieira de; EDELWEISS, Ana Maria de B. Carvalho (org.) A mulher e o teatro brasileiro do século XX. São Paulo: Hucitec, 2008, p. 42-66.

 


Alexandra F. M. Ribeiro é doutoranda e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais e Alboni. M. D. P. Vieira é doutora e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais.

 


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