Ludovica: rememorando a trajetória

Refugiados da Segunda Guerra e enfrentando diversas adversidades no Brasil, família de Ludovica se manteve unida e ajudando aos outros

Alexandra F. M. Ribeiro e Alboni. M. D. P. Vieira
Ludovica Janina Bilinski nasceu em 18 de março de 1952, na cidade de Maringá. Seu pai achou que o nome registrado em cartório era incompatível com o tamanho do bebê e passou a chamá-la de Lídia, denominação a qual veio a ser comumente chamada e reconhecida.
O irmão Eugenio e os pais de Ludovica, Jadwiga Bilinska e Wladislau Bilinski, imigraram da Polônia1 para o Brasil depois de terem vivenciado os horrores da Segunda Guerra Mundial. A avó paterna de Ludovica, de quem a neta levou o mesmo nome como homenagem, após ter sido denunciada por uma vizinha por ter alimentado um fugitivo de guerra, foi presa e morreu cremada em um dos campos de contração nazistas. Quanto à mãe de Ludovica, Jadwiga, trabalhou como enfermeira nos campos de batalha e vivenciou as atrocidades do período. Os pais refugiaram-se na Itália e, por volta de 1949, vieram para o Brasil para construir uma vida de paz.
Porém, os benefícios de vir para o país não foram efetivados. Os pais de Ludovica e o irmão foram enviados para um local e para uma atividade diferente dos que estavam descritos no contrato. O local era uma fazenda no norte do Paraná, no qual eles deveriam cortar as madeiras para construir a própria moradia e posteriormente trabalhar na lavoura. Em entrevista para as autoras, Ludovica contou que o pai não aceitou as condições e falou: “Não, nós não vamos cortar lenha e não vamos fazer isso, porque não fomos contratados pra isso”. Diante do conflito e da insatisfação, a família foi levada para Mandaguari e posteriormente o pai de Ludovica passou a trabalhar na Companhia de Melhoramentos de Maringá.
Com a mudança para Maringá, as adversidades não cessaram para a família. O pai morreu de câncer no ano de 1952, deixando Ludovica com quatro meses de vida, o filho Eugenio de sete anos e a esposa Jadwiga, que não sabia falar português. A mãe de Ludovica primeiramente trabalhou como lavadeira, depois de cozinheira, até ser convidada para trabalhar na posição de governanta em uma casa na cidade de Curitiba.
Diante da impossibilidade da mãe de cuidar dos filhos e trabalhar para alimentá-los, Ludovica e seu irmão Eugenio foram enviados para orfanatos distintos na capital. Com um ano e meio de idade, Ludovica foi para o internato, administrado por freiras, denominado Colégio Menino Jesus, e seu irmão foi abrigado em outro estabelecimento para órfãos. Por volta dos seus seis anos de idade, Ludovica foi transferida para uma instituição localizada na Colônia Murici, em São José dos Pinhais. Pouco tempo depois, Ludovica foi residir no Colégio Nossa Senhora de Lourdes2, o qual era cuidado pelas irmãs de São José de Chamberry, ficando lá até seus 12 anos. A infância de Ludovica foi vivenciada sob os cuidados de freiras em três internatos diferentes.
Sobre a rotina no internato, Ludovica rememorou: “Eu gostava, principalmente quando já era grandinha, já entendia mais as coisas e estava ali no Cajuru. Ali aprendi a fazer limpeza, a bordar, a costurar, a passar roupa” (BILINSKI, 2021). O dia no internato começava às 5h30, horário que as internas órfãs acordavam para limpar a parte do pensionato em que havia meninas pagantes3. Os setores a serem faxinados eram alternados entre as internas: “Um mês eram os banheiros, outro limpar chão, outra vez era arrumar as camas” (BILINSKI, 2021). Depois de finalizada a limpeza dos cômodos, ela e as demais meninas da mesma condição iam tomar café da manhã e posteriormente direcionavam-se para as aulas que se estendiam até as 12 horas. O período da tarde era destinado à prática dos trabalhos manuais e entre 17 e 20 horas era o momento designado para fazer as lições das aulas, depois o jantar e a hora de ir dormir. Nas palavras de Ludovica:

[…] era tudo certinho, mas era bom. Não era ruim, sabe? A gente vivia bem. A gente fazia faxina no colégio inteiro, mas sabe que era gostoso, porque a gente trabalhava sempre em equipe e sempre arrumávamos brincadeiras pra fazer. A gente trabalhava, mas a gente brincava também. (BILINSKI, 2021).

Os tempos de internato marcaram positivamente a memória de Ludovica. Mesmo assim, ela relembrou as vezes que eram castigadas pelas freiras, mas considerou que as crianças aprontavam muito e que os castigos eram merecidos. Ludovica complementou: “Vivíamos uma vida como se estivéssemos em casa com o pai e com a mãe, e as freiras cuidavam bem da gente” (BILINSKI, 2021). Ludovica lembrou que as órfãs recebiam tratamento diferenciado das meninas internas pagantes do Colégio: “[…] pra elas era tudo melhor do que pra nós, desde a alimentação, mas éramos crianças, não sentíamos falta e era normal” (BILINSKI, 2021). Apesar dos castigos e das desigualdades, o cuidado das freias e as amizades proporcionaram aprendizados e bons momentos na memória de Ludovica.
Ela contou que no final de cada ano, quando passava um mês na casa com sua mãe, sentia falta das amizades do internato. E rememorou:

[…] eu gostava, eu gostava do colégio, a gente fazia amizade. Era muito legal. Ainda hoje minha mãe, que está com 99 anos, se culpa muito porque ela me deixou interna e que não vivi com ela. Eu digo: Não, mãe, a senhora não me fez mal, a senhora me fez bem, porque a senhora não me deixou na rua. (BILINSKI, 2021).

Sobre a mãe, Ludovica contou que ela fazia visitas periódicas no internato e que levava surpresas para a filha. As guloseimas recebidas eram distribuídas com as demais meninas. Ludovica narrou: “[…] eu tinha muita pena das pessoas. Eu não sabia só eu comer bala, tinha que repartir com todas” (BILINSKI, 2021).
Aos 12 anos, Ludovica voltou a morar com a mãe e com o irmão. Pela manhã, ela estudava e à tarde cuidava dos afazeres da casa enquanto a mãe trabalhava como enfermeira no Hospital Militar. Ludovica estudou com bolsa no Colégio São José, dando sequência aos estudos no Colégio São Francisco e no Instituo de Educação.
Por volta de seus 18 anos, Ludovica deixou o emprego na farmácia do exército e casou-se. O relacionamento com o marido era difícil e, depois do nascimento de suas filhas Aline e Adelize, Ludovica pediu o desquite4 e retornou para a casa da mãe. Foram tempos difíceis. Ludovica declarou:

Eu tinha vergonha de sair na rua sem aliança e de dizer que eu era desquitada. Geralmente, conforme o lugar em que você chegava, quando você dizia que era desquitada, podia contar que viriam cantadas e besteiras. Era muito triste isso, algumas pessoas achavam que a gente não prestava porque era desquitada, mas daí você vai indo e vai se adaptando. (BILINSKI, 2021).

De acordo com Pinsky (2016), as mulheres separadas eram representadas, em periódicos da década de 1950, como “uma condenada à solidão e ao desamparo moral; e a que se une a um homem separado, alguém que não merece respeito e ainda compromete o futuro dos filhos” (PINSKY, 2016, p. 490). São representações pejorativas, que perduraram por décadas posteriores.
Para seu amparo, Ludovica contou com o apoio da mãe para cuidar das duas filhas e iniciar um curso de auxiliar de enfermagem. Ela considera que foi sua a escolha pela profissão, mas relembrou que a mãe sempre narrava o cotidiano da enfermagem vivenciado tanto na guerra quanto no Hospital Militar. Ludovica começou a trabalhar como enfermeira no ano de 1976, no Hospital Nossa Senhora do Pilar, depois foi para o Hospital São Francisco, posteriormente para a Clínica de Fraturas Vila Hauer até que ficou por 20 anos trabalhando com o obstetra Osmar Muller.
Como enfermeira, Ludovica lembrou dos desafios e das alegrias da profissão. Ela contou que era muito difícil ver enfermos desenganados, por outro lado, dava muita alegria quando os pacientes recebiam alta e iam embora com saúde. Seus anos trabalhando na obstetrícia lhe rederam boas lembranças: “Era gratificante, era bonito ver a criança nascendo. O primeiro choro do bebê é muito bonito. Inclusive eu estava no centro cirúrgico quando dois de meus netos nasceram e ajudei a fazer a cesárea da minha filha” (BILINSKI, 2021).
Com o passar do tempo e com as filhas já crescidas, Ludovica encontrou um companheiro. Ludovica conta que recebeu muito incentivo das filhas para que desse início ao novo relacionamento. Ela havia conhecido Celso ainda na adolescência, mas ambos seguiram caminhos diferentes até se reencontrarem no ano de 1990. Com ternura, Ludovica narrou: “Minhas filhas o chamam de pai, meus netos o chamam de avô, ele é muito bom e estamos aí até hoje” (BILINSKI, 2021).
Atualmente, Ludovica e o irmão cuidam da mãe, que é considerada por ela o alicerce de toda a ascendência. Sobre a mãe, Ludovica salientou o quanto está difícil vê-la em situação deficitária de saúde, mas admite: “Centenária, então, está na hora de ela descansar” (BILINSKI, 2021). Ela complementou:

Apesar de ela dizer que nunca teve tempo de dar carinho pra nós, porque ela tinha que correr atrás do pão de cada dia, minha mãe me ensinou muita coisa, a amar os outros, a respeitar, e graças a Deus eu consegui passar isso para as minhas filhas, para os meus netos, para os meus bisnetos. E a gente é uma família bem carinhosa. (BILINSKI, 2021).

Orgulhosa, Ludovica contou o quanto sua família cresceu: “Tenho duas filhas; cinco netos e tres bisnetos” (BILINSKI, 2021). Espera para o presente e para o futuro continuar desfrutando do amor de seus familiares. Quanto ao passado, Ludovica declarou que procura sempre lembrar dos bons momentos e tenta esquecer das ocasiões ruins.
Agradecemos à Ludovica Janina Bilinski pela entrevista concedida às autoras em 15 de março de 2021
1 Entre 1870 e 1914, aproximadamente 40 mil poloneses chegaram ao Paraná, transformando-se em “o estado que mais recebeu imigrantes desse grupo”. “[…] Em 1870 chegou a Curitiba, também de forma espontânea, o primeiro grupo de imigrantes poloneses. Nesse momento, a Polônia não existia como país independente. Seus territórios, desde fins do século XVIII, estavam divididos entre os impérios Austro-Húngaro, Russo e Prussiano. Essa partilha durou até as vésperas da Primeira Guerra Mundial, englobando assim o período mais importante da emigração polonesa para as Américas (EUA, Argentina e Brasil). As causas da emigração são bem conhecidas. Entre as mais importantes, temos a ‘fome’ de terra, a miséria, as magras colheitas e o sonho de se tornar ‘proprietário rural’, particularmente decisivo para aqueles que emigravam para a América do Sul” (OLIVEIRA, 2009). Após o término da Segunda Guerra Mundial, o contingente de imigrantes poloneses foi ampliado e para o país vieram sobreviventes dos locais de guerra e dos campos de concentração, que viam no Brasil uma possibilidade de reconstruir a vida.
2 “Em 1905, as irmãs de São José, Congregação pertencente ao braço feminino dos jesuítas, provenientes da Savóia, França, que já estavam em Curitiba desde o final do século XIX, acharam oportuno montar um “Pensionato-Escola”. O local seria a bela propriedade na Vila Morgenau, conhecido como Cajuru, onde já havia um prédio construído, pelas próprias irmãs, com o intuito de abrigar uma escola. O Colégio foi inaugurado em 1907” (PILLA, 2004).
3 Em alas pagantes ficavam as filhas da elite paranaense em regime de internato e semi-internato. “As irmãs de São José de Chamberry, ao abrirem o Colégio Cajuru, vieram com a incumbência maior de educar as meninas da elite. Traziam o modelo europeu francês, carregado de polimentos, sinônimo do status almejado pela elite, capaz de diferenciar as meninas que estudavam nesses colégios” (PILLA, 2004).
4 “O divórcio viraria lei no Brasil em 1977, mas, antes disso, a obrigação de ficar atrelado por toda a vida a um relacionamento infeliz já estava sendo contestada por pessoas de classe média e alta” (PINSKY, 2016, p. 524). Porém, as depreciativas representações para as mulheres separadas, publicadas em periódicos que tentavam difundir os papéis de gênero nas décadas anteriores, ainda se mantinham presentes na sociedade brasileira.

Referências

  • OLIVEIRA, Márcio de. Origens do Brasil meridional: dimensões da imigração polonesa no Paraná, 1871-1914. Estud. hist. (Rio J.), v. 22, n. 43, jun. 2009. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-21862009000100012
  • PILLA, Maria Cecília Barreto Amorim. Colégio Cajuru: instruindo para a civilização. In: 8º Simpósio Internacional Processo Civilizador, História e Educação, 2004, João Pessoa. Anais… Novas Exigências do Processo Civilizador na Contemporaneidade. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2004. Disponível em: http://www.uel.br/grupo-estudo/processoscivilizadores/portugues/sitesanais/anas8/artigos/MariaCeciliaBarretoAmorimPilla.pdf.
  • PINSKY, Carla Bassanezi. A era dos modelos rígidos. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (org.). Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2016. p. 469-512.
  • PINSKY, Carla Bassanezi. A era dos modelos flexíveis. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (org.). Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2016. p. 513-543.

 

Alexandra F. M. Ribeiro é doutoranda e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais e Alboni. M. D. P. Vieira é doutora e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais.

 

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