A vida transformada por um livro infantil

Experiência é compartilhada com as comunidades da periferia para democratizar acesso à leitura

Tina Demarche
Era uma vez… um menino que olhava pela janela de sua casa e via o futuro. No horizonte próximo tinha gente, bicho, pipa, árvore, campo de futebol, antenas, casas, cores. Um cenário como outros, em movimento, mas que precisava de um empurrãozinho para se transformar em um lugar melhor para todos.
Esse menino enxergava o que a maioria não via porque vivia sem expectativas e sem oportunidades de sonhar. As crianças não tinham espaço nem incentivo para dar vazão à imaginação e à criatividade. Muitos adultos estavam conformados e não tinham ilusões de viver em um panorama melhor. Então, ele ousou acreditar e fazer a sua parte para que toda a comunidade da favela onde morava enxergasse esse mundo promissor à sua volta.
Otávio Júnior foi esse menino. Ele nasceu em 1983 no conjunto de favelas que forma o Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Descobriu muito cedo que a leitura e a literatura podem fazer pequenos milagres no desenvolvimento pessoal e coletivo das pessoas.
E desde então se dedica incansavelmente a promover atividades que reforcem a cultura de maneira geral. Ainda há bastante trabalho a fazer, mas ele não desanima e tem sempre um projeto novo na ideia.
Ator, produtor teatral, contador de histórias, poeta e escritor, imprime em cada experiência a marca de sua trajetória bem-intencionada.
As histórias que escreveu se ambientam em sua realidade porque ele sabe que as crianças das comunidades, apesar de gostarem de ler, não costumam se ver nos livros.
Leia abaixo o que ele compartilha conosco.
TD – O que você vê da janela?
OJ – Da minha janela eu vejo uma linda comunidade, que pensa muito em transformações, que busca a melhoria da vida das pessoas, que sonha com dias melhores para as próximas gerações. As gerações anteriores não tiveram dias, anos e momentos positivos. Então, da minha janela eu vejo uma comunidade que vislumbra um futuro melhor.
TD – O que você quer que as pessoas que leem seus livros vejam pela janela?
OJ – O meu desejo é que as pessoas que leem os meus livros possam vislumbrar e pensar nesse futuro melhor. De certa forma, fazer reflexões, capacitações e esforços para que o futuro individual e coletivo seja melhor. E a literatura é uma ferramenta superpotente para ajudar nesses desejos – tanto individuais quanto coletivos. Então a partir da literatura, da leitura dos meus livros essas pessoas podem trabalhar essas reflexões e a esperança interna ou a esperança coletiva. Meu desejo é que essas pessoas possam ter inspirações e esperança em transformações.
TD – Você nasceu, foi criado e mora ainda hoje no Complexo do Alemão. O complexo é um conjunto de favelas. Poderia ter sido tudo diferente na sua vida. A que você atribui sua trajetória?
OJ – A minha trajetória é totalmente pautada nos esportes, nas artes e na educação. Eu tive a grande alegria de ter contato com essas atividades culturais, sociais e esportivas. Aprendi muito, muito mesmo, com essas atividades: a ter disciplina, a sonhar, a planejar, projetar, usar muito a criatividade e a imaginação. Acho que hoje o que eu aprendi nos esportes e nas artes moldam a minha vida para que eu pense em levar um pouco do aprendizado e das experiências para as crianças e os adolescentes. Sou muito grato por pautarem uma melhora na minha vida.
TD – Quando começou seu encantamento pelos livros?
OJ – Eu costumo dizer que minha história é um conto de encantamento ambientado na favela. É a história de um menino negro, pobre, porém muito sonhador que encontra um livro no lixão (Dom Gatão). Esse livro vira um amuleto, um objeto que estimula os sonhos, a criatividade desse menino, que até então tinha interação somente com a televisão: com os desenhos animados e programas infantis. O livro que esse menino encontrou passou a ser grande estímulo para o desenvolvimento artístico e criativo da criança que depois se transformou em adolescente e jovem. Em um próximo momento ele pensa em compartilhar os livros com suas comunidades a partir de várias dinâmicas e de um grande projeto para democratizar o acesso à leitura e ao conhecimento na sua favela.
TD – Além dos livros, você foi despertado e atua até hoje com a cultura de maneira geral. Em que segmentos?
OJ – Eu sempre fui fascinado por artes. O primeiro contato com um meio de comunicação foi a televisão e com ela surgiu um encantamento pela arte em imagem, em movimento: os desenhos animados, filmes, telenovelas, que eram uma forma de contação de histórias. Depois veio o livro, que foi um amor superforte e potente. Então veio o teatro e o estudo de outras linguagens, como o cinema, quando tive grande interesse em entender os roteiros, a produção. Os museus também tiveram seu momento. Até hoje sou apaixonado por eles e pelos centros culturais, pelas exposições de artes plásticas. A arte ajuda a desenvolver minha criatividade e imaginação. Todos os movimentos artísticos são uma grande paixão.
TD – Os complexos de favelas são sempre, independentemente de onde se situem, locais de confrontos, de violência, tráfico, morte. Diante desse quadro, por que você acredita que é tão importante levar leitura e conhecimento aos moradores dessas localidades?
OJ – Eu acredito muito na potência da literatura como uma ferramenta de transformação. Transformação que é muito inerente ao ser humano. Nas comunidades não é diferente essa inserção da literatura pensando na transformação dos seres humanos que ali estão. Assim como minha vida foi transformada pelo livro eu tenho a convicção de que a vida de outras pessoas pode ser impactada pela literatura, pelas artes. Como eu disse, nas comunidades não é diferente esse pensamento e esse desejo. Infelizmente existem poucas políticas públicas voltadas para a inserção da literatura nesses locais e eu acredito que se isso acontecesse e fossem trabalhados gêneros e projetos de uma linha de literatura voltada para o empreendedorismo, voltada para a inovação, a filosofia, e voltada para o desenvolvimento das crianças, com projetos socioemocionais nas comunidades haveria desenvolvimento maior, porque a literatura infantojuvenil é muito potente. Há também as questões relacionadas à violência. E quando eu falo nessas questões não é na violência física atribuída aos confrontos, à criminalidade, mas a violência relacionada à fome, ligada à falta de oportunidades para os jovens, para pessoas que querem trabalhar, empreender, violência da falta de saneamento básico. São muitas questões a serem resolvidas. E eu tenho plena convicção de que a literatura pode ajudar a equacionar.
TD – Quais os projetos que você desenvolve nessas comunidades?
OJ – Há muitos anos eu penso em desenvolvimento de projetos de incentivo à leitura nas comunidades dos complexos da Penha e do Alemão, que estão na Zona Norte do Rio de Janeiro. Em um primeiro momento o trabalho consistia em democratizar o acesso à leitura e à literatura nessas comunidades por meio do empréstimo de livros, atividades lúdicas, capacitação de educadores sociais. Eu sempre fui um militante da promoção e mediação de leitura, participando de congressos, seminários e simpósios pelo Brasil, discutindo o acesso à literatura para as periferias, em um engajamento conjunto com outros líderes sociais e comunitários. Assim como a literatura transformou a minha vida, acredito fortemente na literatura transformando a vida de outras pessoas, bastando que exista engajamento com outros atores sociais. E as pessoas veem com bons olhos a literatura nas comunidades. Então, penso em desenvolver novos projetos, talvez também ligados à inovação. Minha vida é totalmente dedicada a pensar nessa qualidade literária.
TD – Quando você sentiu que era o momento de, além de ser leitor, ser escritor? O que o motivou a isso?
OJ – Eu sempre gostei muito de produzir. Minha infância foi riquíssima em relação às brincadeiras tradicionais como bola de gude, pipa, peão, pique-pega. Interagi muito com as brincadeiras urbanas e sempre fui observador dessas brincadeiras. Depois, passei a interagir com a literatura de uma forma muito forte. Eu ficava horas e horas lendo na biblioteca do meu bairro. Mais tarde passei a percorrer a cidade do Rio de Janeiro em busca de bibliotecas e de novas histórias. Nesse período iniciei também minha trajetória no teatro. E lá descobri a narração oral, a contação de histórias. Todos esses links me levaram a escrever. E a escrever sobre a cultura da favela, da periferia; a desenvolver narrativas em que as pessoas das comunidades são as personagens e a comunidade é o cenário. As histórias sempre têm envolvimento com a vida cotidiana na favela. Eu tive êxito no meu primeiro projeto que foi O Garoto da Camisa Vermelha, depois o Chefão lá do Morro, que fazem parte da Coleção Lá do Beco, porque eu percebi que não existiam histórias infantis ambientadas nas favelas. Descobri ferramentas que me permitiram participar de oficinas, workshops e seminários de escrita, escrita literária, de produção de livros, e esses foram passos importantes e decisivos que fizeram parte de um planejamento. Ao longo dos anos eu fui me preparando, estudando a literatura infantil e juvenil, participando de grupos de estudos, observando as feiras de literatura, tendo contato com escritores e ilustradores. Mas apesar do planejamento, foi bem natural a transição do Otávio Junior mediador de leitura para o autor. Além disso, fui abraçado pelos fazedores de literatura infantil e juvenil brasileiros: autores, ilustradores e editores deram suporte para meu crescimento como autor.
TD – Quais os livros que já escreveu?
OJ – Eu adoro essa pergunta, especialmente quando são as crianças que a fazem porque posso ser um pouco mais prático e esclarecer um pouco das dúvidas em relação à publicação. Há uma grande diferença entre escrever e publicar. Então… vamos lá: eu já escrevi mais de 80 textos que podem ser aproveitados e publicados futuramente. Mas tenho 7 livros publicados e mais 3 ou 4 em fase de produção. Talvez eu possa terminar o ano de 2021 com 11 livros publicados. Dos 7 publicados atualmente tem um bem recente que é o De Passinho em Passinho. Há ainda Da minha Janela, O Grande Circo Favela, O Morro dos Ventos, O Chefão lá do Morro, O Garoto da Camisa Vermelha e O Livreiro do Alemão e em breve terei o Maria Preta. Os demais 60 ou 70 para publicação futura.
TD – Escrever para as crianças é uma determinação?
OJ – Sim, escrever para crianças é uma grande determinação, uma inspiração, um compromisso com a infância. De um modo geral, os autores que escrevem para crianças têm esse compromisso com a cultura da infância que é muito ampla, porque de certa forma estamos fomentando o pensamento infantil e juvenil. E esse pensamento tem que ser fomentado de uma maneira muito criativa, muito sólida, com respeito ao universo da criança, universo que trabalha um ser em desenvolvimento e que necessita de estímulos à imaginação e à criatividade. Isso não pode limitar a capacidade da criança de pensar, de fabular e de interagir com o mundo. Essa determinação traz muitas responsabilidades e muitos cuidados.
TD – Da Minha Janela ganhou o Prêmio Jabuti em 2020 na categoria Infantil. Existem outros prêmios também. Quais são?
OJ – Da Minha Janela tem dado muitas alegrias. Além do Jabuti que coroou uma produção muito bela, feita com muito cuidado em parceria com a ilustradora Vanina Starkoff, a obra foi indicada entre os 30 melhores livros da Revista Crescer em 2020; ganhou o Prêmio Cátedra 10, criado na PUC-Rio pela Cátedra Unesco de Leitura na categoria Distinção; recebeu o selo Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ); foi indicado para ser um dos livros do catálogo da Feira do Livro de Bolonha; e esse ano entrou na lista da Biblioteca da ONU.
TD – Quais os próximos projetos?
OJ – Os projetos literários e sociais não param. Atualmente os esforços estão centrados na criação de uma biblioteca sobre rodas, que deverá percorrer as comunidades dos complexos da Penha e do Alemão. Estou muito feliz com esse projeto que está sendo tocado com muito carinho, amor e cuidado. É um sonho! Sempre sonhei com uma biblioteca itinerante, um veículo que circule nas comunidades, que seja colorido, tenha identificação e que as crianças reconheçam que tem livros, sonhos, imaginação e criatividade dentro dele.

QUEM INDICA O QUÊ

Aryane Braun é formada em Letras pela UFPR, funcionária pública, e atualmente atua como bibliotecária no Centro Estadual de Educação Profissional de Curitiba. Ela também é administradora de uma página do Instagram chamada Literataque, um espaço onde compartilha seu amor pela literatura.

“O Fantástico Mistério de Feiurinha foi um livro que marcou a minha infância, que eu li e reli muitas vezes. Com ele eu consegui matar a minha curiosidade sobre o que aconteceu nos contos de fadas depois do ‘felizes para sempre’.
O autor Pedro Bandeira reuniu princesas dos contos de fadas clássicos 25 anos depois de seus casamentos, em torno do mistério do desaparecimento da princesa Feiurinha. Há uma certa rivalidade entre as princesas, e isso rende boas risadas, e a construção do enredo tem um charme inusitado.
Considero o livro um precursor de filmes como ‘Shrek’ (2001) e ‘Encantada’ (2007). Em ambos os contos de fadas clássicos são desconstruídos, que é basicamente o que Bandeira faz nesse livro originalmente publicado em 1986.”

EU INDICO


Da Minha Janela conta a história de um garoto que vê da janela de sua casa, localizada em uma favela do Rio de Janeiro, o universo do próprio autor, Otávio Junior. Um cenário de casas, de pessoas, brincadeiras, movimento, horizonte, vida. A narrativa simples e poética revela o encantamento, as expectativas e sonhos de futuro das crianças que vivem ali, por meio das cores que a ilustradora Vanina Starkoff enxergou ao visitar o complexo de favelas. A editora é a Companhia das Letrinhas.
 

Tina Demarche é jornalista, apaixonada por literatura infantil e metida a escritora. Também gosta de crianças, animais e plantas. Sonha com um mundo sem fronteiras, como o mundo da imaginação. E-mail de contato: tinademarche@yahoo.com.br

 
 

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