Realidade eram os pratos vazios nas aldeias e as mesas fartas da nobreza
Tina Demarche
Era uma vez… uma menininha de capuz vermelho que pela floresta levava para a avó um bolinho e um potinho de manteiga (na versão de Charles Perrault) ou bolinhos e uma garrafa de vinho (na versão dos irmãos Grimm). Em outra floresta, não muito longe dali, um casal de irmãos encontrava uma casa em que o telhado tinha cobertura de torta e as janelinhas de açúcar cândi.
O que há por trás da menção a alimentos nas histórias infantis? Muita gente acredita que cozinhar é um ato de amor. Também é! Quem faz uma receita e quem é convidado a provar desse prato se unem normalmente em um sentimento recíproco de cuidado e carinho. Mas é preciso lembrar que a fome esteve presente e já foi extrema em alguns períodos da História. O real foi retratado nos contos de fadas, seja nos pratos vazios das casas das aldeias ou nas mesas fartas da nobreza.
A escritora Katia Canton, apaixonada pelos contos de fadas e sempre interessada nas questões cotidianas da vida das pessoas, uniu em pesquisa as suas curiosidades. O resultado tem sido transformado em livros que já foram premiados com o Jabuti e o Malba Tahan e traduzidos para o inglês, francês e espanhol. Entre eles, A Cozinha Encantada dos Contos de Fadas, que além de referências a histórias como Cinderela ou O Gato de Botas, trouxe a ela lembranças da família italiana, que cultiva cadernos de receitas e suas preparações afetivas.
Katia também é jornalista e artista visual. Ela desenha, pinta e fotografa, já fez exposições em vários lugares do mundo e recebeu prêmios de poesia pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Realizou mestrado e doutorado em Nova Iorque, cidade onde viveu durante oito anos. Desde 1994 é professora de Arte na Universidade de São Paulo.
É ela que nos conta o que havia por trás da referência aos alimentos nas histórias infantis.
TD – Como surgiu a ideia de pesquisar aspectos do cotidiano nos contos de fadas?
KC – Eu estudo os contos de fadas há muitos anos. Essa história começa na minha infância, quando eu tive um problema de saúde e precisei ficar muito tempo em casa, sem poder brincar na rua. Então, eu passava o dia no apartamento de uma tia chamada Cecília, que morava no mesmo prédio que eu, em São Paulo. Tia Cecília conhecia muitos contos de fadas e eu pedia que ela contasse. Aquele repertório foi entrando em mim e eu sempre pensava nas princesas, na ideia de um final feliz, em por que as princesas precisavam ser daquele jeito – como as meninas europeias – diferentes do que eu era. Ali se criou um vínculo muito grande. Depois, quando jovem, fiz Artes, Jornalismo, morei na França e nos Estados Unidos. Em Nova Iorque, resolvi fazer carreira acadêmica e logo no mestrado, no Departamento de Artes, quando perguntaram qual seria a pesquisa, me veio à cabeça a tia Cecília e essa ideia de continuar a pesquisar os contos que tinham me intrigado tanto. Mas então de uma maneira diferente.
TD – Os estudos que permitiram a elaboração de A Cozinha Encantada dos Contos de Fadas te conduziram pela culinária, que é sempre uma forma de amar as pessoas. Colocamos temperos muito especiais nessas preparações. Como foi esse processo de pesquisar sobre os alimentos?
KC – Uma das questões que marcam meu estudo é o fato de os contos de fadas serem versões literárias que têm a origem na tradição oral, nos contos contados pelos camponeses. Aliás, antes: os contos que começam no período tardio do neolítico, ainda nas cavernas. Várias narrativas vão se desenvolvendo na tradição oral, no decorrer do tempo, até chegar nas histórias que conhecemos. Essas histórias primordiais sempre têm em seu conteúdo questões ligadas à vida das pessoas, à dureza da vida e a aqueles desejos que as pessoas gostariam de ver realizados, mas que muitas vezes eram impossíveis. Por exemplo, as famílias que abandonavam seus filhos porque não tinham como alimentá-los, para que elas fossem encontrar uma casa feita de doces e um tesouro que pertencia a uma bruxa. Estou falando de João e Maria. Nas histórias encontramos tudo aquilo que as pessoas mais almejavam e que mais dificuldade tinham para alcançar. Um desses elementos é a comida. Antigamente era muito difícil ter a abundância de alimentos que temos hoje. E os camponeses, que eram quem contavam as histórias, viviam buscando comida. Existe, inclusive, um teórico importante chamado Robert Darnton, que tem um livro que se chama O Grande Massacre dos Gatos, em que ele conta que muitas vezes os camponeses passavam a vida toda buscando se alimentar melhor e morriam com a barriga vazia. Sem nunca ter experimentado a sensação de saciedade, a sensação que a gente chama de “barriga cheia”. Com aquela realidade, as histórias muitas vezes continham alguma referência à comida, que era um sonho, um bem que se almejava. Então fui buscar versões das histórias. E se nos voltarmos para versões antigas, sempre vamos encontrar esses elementos. Cinderela, por exemplo, é um conto em que aparentemente não tem comida. Mas se voltamos nas versões até o (Charles) Perrault, no século 17, na França, vamos encontrar alusões à Cinderela ter sido presenteada pelo príncipe com um prato de frutas. Também há referências a ela saber comer com garfo e faca, sendo que as boas maneiras eram uma coisa nova para a época. Além disso, existem também menções à boa educação em oferecer comida aos convivas.
TD – Você fez as receitas antes de incluí-las no livro?
KC – Minha família é muito ligada à comida. Minha mãe tem cadernos de receitas que a mãe dela escreveu. Quando eu fui morar fora ela fez e me deu um caderno. Recentemente fez outro. E eu tenho vários livros com receitas também. É uma tradição de família. Família italiana. Eu testei algumas receitas que já conhecia, outras pesquisei, mas a maioria é receita que a gente pratica na família mesmo. E, é claro, essa questão da comida está absolutamente ligada ao aspecto afetivo, amoroso, ao sustento. Não é à toa que a comida é um elemento muito importante e muito presente nos contos da tradição oral, que viraram contos de fadas, desde o início da comunicação humana.
TD – Você é uma artista múltipla. A arte faz parte de sua vida de variadas formas?
KC – Eu sou mesmo muito curiosa a respeito da vida. Essa ideia de ser uma artista e uma pesquisadora múltipla sempre me acompanhou. Venho de uma família bastante ligada às artes: meu pai era arquiteto e artista, pintava e desenhava muito, e minha mãe estudou Turismo e pesquisou muito sobre o folclore. Eu vivi cercada desse mundo, mas também me envolvi muito com o Jornalismo, trabalhei por vários anos na imprensa, fui uma buscadora de boas histórias. Eu me interesso e tenho muito amor pelo ser humano, acho que é isso que me impulsiona.
TD – Seu foco é sempre a infância?
KC – Eu não trabalho só para a infância. Na verdade eu tenho até uma dificuldade de separar uma produção que seja para adultos ou para crianças. Ao contrário, tenho uma coisa meio de juntar. Quando faço um projeto dificilmente tento classificar dentro de parâmetros de idade. Pesquisar comida nos contos, serve para todas as idades. E como artista eu desenho, escrevo poemas, faço projetos com os contos de fadas, mas não especificamente para crianças. Trabalho muito com a questão do feminino, de como as protagonistas dos contos de fadas foram retratadas ao longo do tempo em várias versões.
TD – Algumas obras suas já foram reconhecidas com prêmios, incluindo o Jabuti. Quais foram?
KC – Já ganhei vários prêmios. O primeiro nos Estados Unidos, quando lancei o livro que foi o resultado do meu doutorado e que se chamava O Conto de Fadas Revisitado. No Brasil recebeu o título de E o Príncipe Dançou, editado pela Ática. Ganhei também três prêmios Jabuti com a produção infantojuvenil: O Maria Martins – O Mistério das Formas, pela Paulinas, que era um livro poema, baseado na obra da escultora Maria Martins; depois foi com Pintura Aventura, um livro-álbum que também é uma espécie de caderno sobre a História da Arte, História da Pintura, em que a criança participa ativamente de exercícios e projetos que o livro propõem, da editora DCL; e o outro veio com Moda, Uma História para Crianças, lançado pela Cosac Naify. É um livro produzido junto com a Luca (Luciana) Schiller, amiga e colega que fez as ilustrações e trabalha com moda. Foi muito legal porque o livro foi todo feito a mão, conta a história da moda e fala sobre a liberdade de se criar um estilo próprio.
TD – Você também é ilustradora. Como avalia o processo das narrativas verbais e visuais de suas obras?
KC – Não sou exatamente ilustradora, sou artista. Faço ilustrações para meus próprios livros, mas gosto muito é de trabalhar em parceria. E organizar exposições de arte com essa temática dos contos de fadas é uma paixão que eu tenho. Realizei uma chamada Era Uma Vez Arte Conta Histórias do Mundo que começou no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, e viajou outros lugares do país.
TD – Como você analisa a literatura infantil e juvenil que se faz no Brasil?
KC – A literatura para crianças e jovens no Brasil é superinteressante. A gente está num momento, desde o final dos anos 90, de excelência. Há uma criatividade e uma ousadia muito grandes. Falta só um incentivo governamental para apoiar as editoras, apoiar os projetos de adoção para que a gente possa voltar a decolar. É isso que falta porque, realmente, talento temos em abundância. Tanto no texto quanto na imagem o Brasil é muito bom.
QUEM INDICA O QUÊ
Daniel Caron é fotógrafo e aborda em seus projetos temas relacionados aos Direitos Humanos e à valorização da cultura popular. Como fotojornalista atuou nos jornais Tribuna do Paraná, O Estado do Paraná e Gazeta do Povo. Tem trabalhos no acervo do Museu da Abolição (PE) e no Museu Histórico Jacinto Souza (CE). Teve fotografias expostas nos Festivais de Tiradentes e Ouro Preto (MG) e em Morretes (PR).
“Eu indico o livro A Árvore Generosa, de Shel Silverstein (Companhia das Letrinhas), que tem sido um dos livros preferidos dos meus filhos nas nossas leituras na hora de dormir. O livro trata da amizade de uma árvore e um menino e de maneira bastante simples nos conduz a reflexões profundas. Além do texto, Silverstein assina as belíssimas ilustrações em tom minimalista. A tradução é do excelente Fernando Sabino”.
EU INDICO
Mil e Uma Estrelas. Vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura na categoria Ilustração, essa obra de Marilda Castanha mostra que com uma boa história, a hora de dormir pode ser mais tranquila. No livro, a menininha corajosa que enfrenta o ogro numa noite sem nenhuma estrela no céu, ensina que o medo do escuro pode e deve ser enfrentado, que o desconhecido – aquilo que não se vê – pode não ser exatamente uma ameaça. Editora SM.
Tina Demarche é jornalista, apaixonada por literatura infantil e metida a escritora. Também gosta de crianças, animais e plantas. Sonha com um mundo sem fronteiras, como o mundo da imaginação. E-mail de contato: tinademarche@yahoo.com.br