Criada em Curitiba pela escritora Bebeti do Amaral Gurgel, a livraria ajudou a criar um espaço para ouvir as mulheres até o seu fechamento. Seria a hora de voltar?
Camile Triska
Era setembro de 1991 quando a Galeria Schaffer, no centro de Curitiba, começava a ser tornar um local de encontro para as mulheres e feministas da capital. Ali, foi aberta a Lilith, primeira livraria feminista do Brasil fundada pela jornalista e escritora Bebeti do Amaral Gurgel.
Em uma cidade conhecida por ser conservadora e machista, poderia parecer uma atitude afrontosa abrir um espaço feminista. Mas, de acordo com Bebeti, não era o caso. “Na época em que abri a Lilith rolava uma parada de Curitiba progressista, cidade referência em e qualidade de vida, que, na verdade, já vinha desde os anos 1940 com o Plano Agache. Somando a isso, veio o Jaime Lerner com sua genialidade única e um marketing espetacular. Assim o resultado foi uma explosão: Curitiba passou a ser uma cidade conservadora e moderna ao mesmo tempo. Não chegava a ser cosmopolita, nem provinciana. Em uma cidade assim, combinava uma livraria feminista”, observa ela.
Bebeti estava certa. A livraria virou um ponto de encontro não somente de feministas, mas também de homens não machistas, estrangeiros, professores e professoras, acadêmicos e acadêmicas, artistas, homossexuais, negros, poetas, escritores e escritoras que buscavam os livros escritos exclusivamente por mulheres – nenhum título da Lilith era de autores homens – muitas vezes não encontrados em outras livrarias.
Durante onze anos, as mulheres tinham lugar de encontro e o feminismo um local para debate na capital paranaense, com venda de livros, lançamentos e encontros. Mesmo que o conservadorismo da cidade não deixasse tudo isso ser divulgado muito, o público acabava encontrando a Lilith.
“O feminismo estava forte no Brasil, na moda, porém aqui a mídia dominante nunca foi simpática à causa, então tínhamos essa barreira. Mas a livraria estava sempre cheia”, conta. Personalidades que passam por Curitiba sempre faziam questão de visitar a livraria, como Danda Prado, Rose Muraro, Heloísa Buarque de Holanda, Marta Suplicy, Luiza Erundina e tantas outras que demoraria horas para Bebeti lembrar.
A proposta foi criar um espaço onde as mulheres se sentissem à vontade para encontrar livros com temas específicos da mulher como “gravidez na adolescência”, “menstruação”, “homossexualidade”, “mulheres que não querem ter filhos” e outros. “Esses temas geralmente eram desconfortáveis para pedir a um livreiro homem. Além disso, tínhamos muita literatura e biografias de mulheres, naturalmente. Era um espaço para ouvir o que as mulheres tinham para dizer”, pontua.
Conservadores e progressistas
“Curitiba é a cidade onde há um dos maiores índices de escritores e escritoras do país. No frio, a gente fica em casa, lê, escreve. E por que não escrever e ler livros feministas? Por que não lutarmos por igualdade de gênero?”, questiona Bebeti ao responder porque escolheu a cidade para abrir a livraria.
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Segundo ela, os curitibanos são divididos em dois lados. Os curitibanos do lado A são os conservadores, os desconfiados, que se ofendem com tudo e são resistentes às novidades mais progressistas. Já o lado B, o que frequentava a Lilith, vive em uma Curitiba escondida, camuflada… “Aquela onde a gente lê poesia de madrugada, da libertinagem, dos bares que têm senha para entrar, dos primeiros bares LGBTQI+ do Brasil, das sopas escondidas das prostitutas, das bandas de rock, das surubas nos restaurantes japoneses. É a Curitiba do Dalton Trevisan, do Paulo Leminski. É a Curitiba clandestina”, considera.
Da segunda onda ao retrocesso
Nos anos de 1990, quando a Lilith foi aberta, o Brasil ainda passava pela segunda onda do feminismo, que começou por volta da década de 1960, marcada principalmente por discussões sobre sexualidade, opressão, objetificação da mulher e direitos reprodutivos.
Nessa época, Bebeti morava na Holanda e, na Europa, o feminismo era forte e livrarias voltadas a esse movimento eram comuns. “Só em Amsterdam havia três. Na América do Sul já tinha duas, uma na Argentina e outra na Bolívia, no Brasil ainda não havia nenhuma, embora a luta feminista fosse grande aqui também. Voltei da Holanda porque tinha certeza de que estava na hora de termos um lugar nosso para discutirmos nossas jornadas.”
Em 2002, quando a terceira onda do feminismo já acontecia e essas questões já eram mais debatidas na sociedade, a livraria acabou sendo fechada, pois, segundo Bebeti, não havia mais a necessidade de um espaço só para mulheres.
Após quase dez anos, saímos já da terceira onda do feminismo, com destaque, principalmente, para temas como raça e classe social, e chegamos em uma quarta onda, a que explode no ambiente digital, trazendo discussões de identidade de gêneros e padrões corporais, entre tantas outras questões que ainda são motivo de lutas.
Mas, segundo Bebeti, a luta feminista no Brasil acabou tendo um retrocesso gigantesco, houve aumento da violência contra a mulher e problemas como assédio, estupro e salários desiguais, que nem deveriam mais ser debatidos.
“Tudo o que a gente falava há 30 anos voltou a ser pauta em um país que caminha para trás a passos largos”, salienta. Então, seria a hora de uma retomada da Lilith? “Sim, penso em reabrir com novidades”, revela.
Quem sabe, daqui a algum tempo, o feminismo volte a ter mais um espaço para lutas em uma Curitiba que ainda precisa resistir ao machismo. Como diz Bebeti: Feminismo neles!