Em entrevista ao Curitiba de Graça, artistas revelam como é a criação de um projeto literário que reflete os problemas femininos por meio da mitologia das fadas
Camile Triska
As mulheres costumam crescer lendo histórias de conto de fadas, mas a realidade feminina é bem diferente do “viveu feliz para sempre”. Machismo e sexismo – sendo que mulheres LGBTQ+ ainda precisam enfrentar a homofobia e a transfobia e as mulheres negras, o racismo – o que levam a diversos tipos de assédios e até à morte.
Para fazer reflexões políticas, culturais e sociais sobre todos esses problemas, duas artistas, uma curitibana e outra radicada na capital, realizam um projeto literário, disponibilizado no Instagram e Facebook, que traz a mitologia das fadas para a realidade contemporânea, em ilustrações e textos com muito humor e acidez.
Para Leonarda Glück e Katia Horn, escritora e ilustradora, respectivamente, do “Fadinhas Fodidas”, o projeto promove esse debate de ideias. Por mais audacioso que possa parecer, já que o Brasil é um país culturalmente machista, elas consideram que é fundamental ter ações como essas para ajudar a conscientizar o público sobre essas questões.
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As fadas ilustradas costumam ser baseadas em mulheres comuns, passando por diversos dilemas, mas também são inspiradas em personalidades que estão em voga na mídia.
As artistas conversaram com o Curitiba de Graça por e-mail para contar um pouco sobre como o “Fadinhas Fodidas” surgiu, o processo de criação, o reflexo de suas próprias vivências nos textos e ilustrações e a ideia de lançar um livro do projeto (que quando estiver disponível, avisaremos vocês).
O projeto foi um convite da Pomeiro Gestão Cultural. Como eles chegaram até vocês e o que levou vocês a abraçar o projeto?
Leonarda: Durante os últimos três anos, eu tenho escrito os textos das fadinhas e soltado nas minhas redes sociais pessoais, sem nenhum compromisso artístico específico, quase como um hobby mesmo. E acredito que o convite da Pomeiro veio justamente do contato com esses textos, que tiveram boa repercussão por lá, e inclusive muitos amigos meus sugeriam que eu fizesse alguma coisa a partir deles, um livro ou algo assim. A ideia da Pomeiro, no início da pandemia de covid-19, de unir esses textos às ilustrações da Katia Horn, que é uma amiga minha de muito tempo, mas com quem eu só havia trabalhado uma vez (ela fez cenografia para um espetáculo meu em 2019), foi super bem recebida desde o início, porque eu simplesmente adoro o trabalho da Katia, para mim, ela é uma multiartista extremamente talentosa. Então, foi super fácil embarcar nessa ideia.
Katia: Já trabalhamos juntos antes, em outros projetos, e temos uma relação de amizade e admiração mútua há bastante tempo.
“Pessoalmente, eu gosto muito da fada datilógrafa que morre toda vez que alguém escreve ‘extrema imprensa’ na internet”, revela Leonarda Glück
Como é a escolha dos temas das ilustrações e textos? Em que vocês se baseiam para escolher as personagens?
Leonarda: Geralmente, pessoas comuns, mulheres, passando por dilemas éticos e existenciais, são as personagens que mais trabalhamos. Eventualmente o que ocorre durante a semana também é utilizado nos textos, que depois viram as ilustrações. Primeiro, eu escrevo os textos e em seguida eles vão para a Katia para que ela ilustre a cena. É ela quem “finaliza” a ideia formalmente, criando a estética das fadinhas que chega até vocês em imagens que nós postamos, na sequência, nas redes sociais do projeto. Nós também temos um grupo de WhatsApp, onde colocamos várias possíveis ideias futuras, e, claro, ficamos sempre de olho bem aberto naquilo que está acontecendo ao nosso redor, política e socialmente.
Katia: As personagens aparecem como reflexo de pessoas, situações reais, discussões em voga nas redes sociais. Trocamos ideias e sugestões tanto nos textos como nas ilustrações.
De todas as ilustrações e textos que fizeram até hoje, tem algum que vocês destacariam ou que teve alguma com maior repercussão ou mesmo polêmica?
Leonarda: É difícil escolher, mas uma das que mais chamaram a atenção e repercutiram foi a fadinha idosa e pobre que era alinhada ideologicamente com os ricos, pouco afeita à democracia e aos direitos humanos. Um tipo de figura que está bastante “em voga” na nossa sociedade atualmente. Pessoalmente, eu gosto muito da fada datilógrafa que morre toda vez que alguém escreve “extrema imprensa” na internet.
Katia: A Carol com C foi a fadinha mais curtida até agora, talvez porque tenha pego carona na polêmica nacional envolvendo o BBB21… Eu acho difícil escolher a preferida, mas gosto muito da rainha da Inglaterra: “Toda vez que o pai tá on, a fada mãe tá off?”
Como vocês veem a importância desse projeto para ajudar no combate de todos os problemas enfrentados pelas mulheres?
Leonarda: Claro que o sonho de todo artista é provocar mudança de paradigmas imediatamente, ou mesmo a médio prazo, no público. A realidade, no entanto, não é bem assim. Especialmente em um dos países que menos leem na América Latina, por exemplo. Então, eu acredito que promover reflexão já é um passo bastante audacioso, dado o nosso contexto. Nossas fadinhas podem não resolver os problemas das mulheres, mas ao menos colocam as pessoas para refletirem sobre eles e, eventualmente, tentarem modificar a chave do problema.
Katia: Acho que este trabalho vem contribuir para o debate de ideias e questões que são importantes no momento político que atravessamos ou, no mínimo, abrir para o questionamento e tomada de consciência do público. Creio que o humor e a ironia são instrumentos poderosos nesse processo.
Vocês são uma mulher cis e uma trans, o que reflete realidades diferentes de preconceitos. Todos os problemas pelos quais já passaram ou viram se refletem, de alguma forma, no projeto?
Leonarda: Acredito que alguns dos problemas, se não todos, que aparecem nas Fadinhas já acometeram a vários tipos de mulheres e demais pessoas com expressão feminina de gênero, inclusive a mim e a Katia. Talvez isso seja o que mais gera identificação no público, justamente porque essas fadas são mulheres da vida real, lidando com problemas e questões da vida real, imediata. Pode ser uma vizinha, a professora, a irmã, a mãe. Algumas delas, inclusive, não são boas, são pessoas diferentes ideologicamente de nós, más e perversas. Isso confere uma realidade ainda maior ao trabalho, já que originalmente as fadas fazem parte de uma mitologia de fantasia, mágica e “maravilhamento” (sic), por exemplo.
Katia: Certamente, estas fadinhas refletem nossas vivências, seja como observadoras do mundo ou como personagens da trama. Ser mulher nesse planeta patriarcal e misógino é um desafio diário que tanto eu quanto a Leo nos dispomos a assumir em toda sua plenitude e potência, como mulheres e artistas. As fadinhas Fodidas não são só rostinhos bonitos, rs!
A ideia da publicação dos livros e produtos é apenas um projeto distante ainda ou já está sendo desenvolvido?
Leonarda: Como eu disse anteriormente, muitos amigos meus sugeriam que nós fizéssemos o livro das fadinhas e, depois que a Pomeiro formalizou a ideia conosco, encampando essas fadinhas rebeldes e sofridas da vida real, publicar um livro e fazer camisetas e demais objetos com a marca das fadinhas passou a estar presente em nossos pensamentos. É um projeto mais próximo do que distante. E nós torcemos para que dê certo. Nós vestimos a camisa das fadinhas com muito orgulho!
Katia: Nas nossas primeiras conversas, ainda antes da pandemia, a primeira ideia era fazer um livro, que já visualizamos desde o início desta parceria. Eu adoro ver minhas ilustrações circulando na rede, mas como artista gráfica, prazer maior é ver a obra impressa, circulando e se transformando em objeto para habitar a casa e a memória das pessoas. Já estamos cheias de ideias para esta edição, vai ser um livro lindo!