Trabalho da historiadora contribuiu para desvelar a História do Paraná
Alexandra F. M. Ribeiro e Alboni. M. D. P. Vieira
A historiadora Cecília Maria Westphalen, filha de Pylades Westphalen e Palmira de Souza Westphalen, nasceu em 27 de abril de 1927, no historicamente conhecido município da Lapa. Durante a Revolução Federalista em 1894, a cidade montou um cerco, que durou 26 dias, em resistência às tropas republicanas. Entretanto, em entrevista concedida a José Wille, em 1997, ao rememorar seu local de nascimento, Cecília enfatiza não os feitos históricos locais e sim as belezas naturais. Em suas palavras: meu antepassado, “ao chegar à Lapa, se encantou por aquela paisagem – quem não se encantaria? Ainda hoje, a gente se encanta” (WESTPHALEN, 1997).
Sem mencionar nenhuma particularidade acerca de sua mãe, Cecília ressaltou a atividade profissional de seu pai como que uma herança geracional: “O meu pai, que era farmacêutico na Lapa, filho do primeiro farmacêutico diplomado no Paraná, que foi Olympio Westphalen” (WESTPHALEN, 1997). Por razões diversas, Cecília com seus pais e irmãos – Olympio e Edgar – deixaram a Lapa. O pai de Cecília trabalhou “na construção da estrada de Curitiba a Joinville; depois, foi ser farmacêutico na Vila de Fernandes Pinheiro e, mais tarde, em Irati” (WESTPHALEN, 1997). Em 1944, a família mudou-se para Curitiba, local em que Cecília concluiu o ginásio no Colégio Estadual do Paraná e escola normal no Instituto de Educação do Paraná.
Aos 70 anos de idade, quando foi questionada acerca do momento em que surgiu o interesse pela História, Cecília rememorou a sua avidez, desde muito menina, pela leitura, a influência do irmão e das amigas, além de questões de ordem financeira que impactaram na escolha da profissão. Quanto ao seu gosto pela leitura, Cecília explicou:
Eu lia muito, principalmente nos tempos de Fernandes Pinheiro, pois não havia escola para mim lá. Tudo que caía em minhas mãos, eu lia. Em Irati, me recordo que o primeiro livro mais pesado, mais massudo que li foi a História Universal – foi o primeiro livro que comprei de História, pois sempre tive esta grande curiosidade (WESTPHALEN, 1997).
Além de se identificar como exímia leitora, Cecília narrou que foi por intermédio do irmão que conheceu o curso: “Fui alertada pelo meu irmão Olympio Luiz Westphalen, que se formou antes de mim, lá no ginásio de Irati, e que veio para Curitiba fazer o curso de Geografia e História na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras” (WESTPHALEN, 1997). A escolha de outras moças de sua turma de escola normal também contribuiu para seu encaminhamento: “Quando […] conclui a Escola Normal, várias colegas minhas e grandes amigas que eu tenho até hoje foram fazer o Curso de História e Geografia” (WESTPHALEN, 1997).
Ademais, Cecília narrou que sua família passou por dificuldades financeiras no período. Cecília revelou: “Eu pretendia fazer Direito, mas acabei indo fazer o curso de História. […] Direito era muito mais caro” (WESTPHALEN, 1997). Para a matrícula, Cecília contou com o empréstimo de um senhor chamado André, o mesmo que a presenteou, anos depois, em sua formatura: “Ele deixou uma caixa e foi a única vez na minha vida que eu ganhei o (perfume) Chanel Número 5”. Ela também considerou que seu trabalho como professora possibilitou pagar seus estudos:
Eu me formei na Escola Normal, em 1946, e comecei a trabalhar. Fui nomeada professora-substituta do ensino primário, no dia 3 de outubro, mesmo antes de me formar, em dezembro, graças a Deus. […]. E acabou sendo importante, sobretudo para a minha compreensão de que o ensino pago, mesmo com dificuldade, não mata ninguém (WESTPHALEN, 1997).
A graduação no curso de Geografia e História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), no ano de 1950, foi apenas o início de seu longo envolvimento com a disciplina e com a universidade. No ano de 1957, tornou-se Professora Catedrática de História Moderna e Contemporânea na mesma universidade, na qual ela se aposentadoria muitos anos depois. Cecília, ao falar dos alunos que teve das mais variadas partes do país, explicitou seu orgulho acerca da instituição: “A Universidade Federal do Paraná constitui a mais legítima contribuição que os paranaenses criaram, mantiveram e mantêm. E, oxalá, meu Deus, continuem a manter!” (WESTPHALEN, 1997).
Após retornar do curso de pós-graduação feito em Colonia, na Alemanha, entre os anos de 1958 e 1959, Cecília promoveu uma renovação na escrita da história do Paraná. Com bases rigorosamente científicas e estudos de exploração de arquivos, houve um alargamento nas possibilidades de pesquisas e na historiografia paranaense. “Com Brasil Pinheiro Machado, Altiva Pilatti Balhana1 e ela mesma, o Departamento de História da UFPR tornava-se um lócus de investigação social e econômica, com foco nos estudos de imigração, nas relações comerciais e nas estruturas agrárias” (MACHADO, 2017, p. 305). Cecília relembrou que, a partir de 1966, começaram a estudar “[…] esses movimentos, que, do ponto de vista historiográfico, eram um filão riquíssimo e, do ponto de vista político e social, eram uma tristeza” (WESTPHALEN, 1997). Havia farto material, mas era preciso deixar os métodos convencionais da História e ir a campo para coletar mais. Foi por meio de projetos que promoviam intercâmbios entre arquivos e universidades e de uma perspectiva crítica que Cecília, com seus amigos de departamento, formou muitos historiadores da UFPR.
A historiadora Daiane Vaiz Machado, que estuda a trajetória intelectual de Cecília Westphalen há 9 anos, gentilmente nos concedeu suas considerações. Em seu doutorado, Machado (2016) dedicou-se a investigar o percurso intelectual de Cecília entre os anos de 1950 e 1998, analisou a produção historiográfica acerca da formação social e a economia paranaense do século XIX; investigou os textos sobre preservação arquivística e métodos de pesquisa em História; explorou a contribuição para a profissionalização do ofício de historiador a partir da sua atuação em sociedades acadêmicas e na pós-graduação. De acordo com Machado, suas pesquisas sobre Cecília foram privilegiadas devido ao arquivo pessoal da professora estar disponível no Fundo Cecília Westphalen, depositado no Arquivo Público do Paraná. Além dos documentos já estudados, o acervo é composto por “[…] caixas e caixas de arquivo a serem abertas, folheadas, estudadas. Com tal grandiosidade, uma coisa é certa: existem muitas narrativas que podem ser compostas a partir do arquivo pessoal de Westphalen” (MACHADO, 2021).
Por meio dos estudos nos documentos, Machado qualifica que “poder é uma palavra que cai bem a Cecília”. “Westphalen esteve à frente de muitos projetos, atuou na primeira campanha estadual contra o analfabetismo, ocupou cargos no governo estadual e federal, e na UFPR sempre foi chefe de alguém” (MACHADO, 2021). O dinamismo de Cecília é explicitado na declaração da historiadora:
[…] exerci uma gama de atividades administrativas na universidade. É claro que esse exercício me fez diminuir o ritmo da pesquisa, mas não paralisá-lo. Continuei dando minhas aulas normais e continuei a realizar minhas pesquisas, tanto que hoje, já aposentada há algum tempo, ainda tenho muito material coletado. Os meus colegas caçoam, dizendo “A senhora vai lá, no seu baú, e acha coisas, não é?”. Mas, claro, trabalhei muito na coleta de material (WESTPHALEN, 1997).
Cecília também desenvolveu projetos fora da UFPR. No ano de 1961, Cecília compôs o corpo fundante e integrou o núcleo diretor por aproximadamente mais 15 anos, da Associação Nacional dos Professores Universitários de História, ANPUH2.
Por volta de 1970, Cecília intermediou mudanças na UFPR. No entendimento de Cecília, “[…] a conjuntura da criação, instalação e funcionamento dos cursos de pós-graduação, que deu nova vida, novo alento e, sobretudo, desenvolveu mais intensamente a pesquisa científica na universidade” (WESTPHALEN, 1997). Westphalen tinha o poder de intermediar contatos políticos e por meio deles conseguia “[…] apoios financeiros importantes para subsidiar a circulação internacional na pós-graduação oferecida pela UFPR, bem como para viabilizar os encontros acadêmicos da ANPUH” (MACHADO, 2021).
Apesar de não ter deixado registro de posicionamentos feministas em seus arquivos, Cecília, a seu modo, colocou-os em ação. “A historiadora cercou-se de mulheres competentes, engajadas no ofício, buscou apoiá-las incentivando especializações no exterior, o ingresso na carreira universitária, inserindo-as em projetos, articulando contatos, chamando-as para palestras e seminários” (MACHADO, 2021). A dimensão de sua trajetória intelectual e profissional certamente inspiraram muitas carreiras femininas, complementa Machado.
As correspondências dos anos 2000 retrataram as rotinas de exames, remédios e tratamentos que compunham o cotidiano de Cecília. De acordo com Machado (2021), “O corpo doente era tematizado nas cartas trocadas com as colegas. Elas, igualmente doentes, solidarizavam-se com o estado de saúde de Altiva Pilatti Balhana, companheira de Westphalen”. Para a companheira, que sofria com crises de Alzheimer, Cecília ofereceu
[…] um “ramalhete de flores” àquela que foi sua primeira parceira de pesquisa de campo, a única leitora da sua tese de cátedra em História Moderna e Contemporânea, a colega docente que assume os encargos de suas disciplinas durante seus afastamentos, o par da cerveja e das viagens, a cúmplice de uma vida (MACHADO, 2021).
Com conferências agendadas e pesquisas de campo em andamento, Cecília faleceu em março de 2004, vítima de embolia pulmonar. Suas produções, que tanto contribuiriam para desvelar a História do Paraná, continuam vivas, inacabadas, do mesmo modo que ela considerava que deveria ser a escrita da História, sem ponto e sim em constante construção.
1Altiva Pilatti Balhana (1928-2009), companheira de Westphalen, era professora de História da América na UFPR, pesquisadora da imigração italiana no Paraná e referência em História Demografia” (MACHADO, 2017, p. 304).
2A entidade trazia na sua fundação a aspiração da profissionalização do ensino e da pesquisa na área de história, opondo-se de certa forma à tradição de uma historiografia autodidata ainda amplamente majoritária à época (ANPUH, 2021).
Agradecimento à historiadora Daiane Vaiz Machado por gentilmente conceder o depoimento que compõe esta coluna.
Para saber mais:
- ANPUH. Quem somos. São Paulo, 2021. Disponível em: https://anpuh.org.br/index.php/quem-somos.
- MACHADO, Daiane Vaiz. Dois tempos de um percurso de experiências historiográficas: 1958-59 e 1970. As cartas que Cecília Westphalen trocou com Altiva Pilatti Balhana e Fernand Braudel. Patrimônio e Memória, São Paulo, Unesp, v. 11, n. 1, p. 137-159, jan./jun. 2015.
- MACHADO, Daiane Vaiz. Por uma “ciência história”: o percurso intelectual de Cecília Westphalen, 1950-1998. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual Paulista, Assis, SP, 2016.
- MACHADO, Daine Vaiz. Texto historiográfico como “discurso de justificação”: Cecília Westphalen e a construção de um lugar para si. Resgate – Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 1 [33], p. 295-314, jan./jun. 2017.
- MACHADO, Daiane Vaiz. Um possível depoimento sobre Cecília Westphalen. Depoimento concedido às autoras em janeiro de 2021.
- WESTPHALEN, Cecília Maria. A história do Paraná foi a missão de vida Cecília Westphalen.
- Entrevista concedida a José Wille em dezembro de 1997. Portal Memória Paranaense, Curitiba, 2020. Disponível em http://www.memoriaparanaense.com.br/?s=A+história+do+Paraná+foi+a+missão+de+vida+de+Cec%C3%ADlia+.
Alexandra F. M. Ribeiro é doutoranda e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais e Alboni. M. D. P. Vieira é doutora e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais.
Formidável e de excelente contribuição para o conhecimento cultural através da história de pessoas e das pessoas. Enobrecedor.
Muito obrigada por acompanhar nossas pesquisas!