A história da dona de casa Aparecida representa um pouco da vida de várias mulheres, quase sempre desvalorizadas, mas que têm poderes cotidianos dignos de serem estudados e rememorados
Por Alexandra F. M. Ribeiro e Alboni. M. D. P. Vieira
Nascida em 17 de agosto de 1955, na cidade de Iguaraçu, no Paraná, Aparecida Ferreira Martins é a última de um total de 11 filhos. Teve uma infância difícil, do ponto de vista econômico. A alimentação da família era composta por duas refeições diárias: o almoço e a janta, basicamente à base de quirerinha de milho. Aos 11 anos de idade, Aparecida, com pais e irmãos, mudaram-se para uma residência alugada na cidade de São José dos Pinhais, local em que seu pai veio a falecer dois anos depois. A educação formal reduzida, somada às dificuldades econômicas familiares, limitou suas escolhas profissionais.
Aparecida tornou-se operária aos 14 anos de idade. Nessa empreitada, para a qual recebia meio salário-mínimo mensal, ela pegava o ónibus às 5h45 para chegar à indústria Fiat Lux. Trabalhava na linha de produção de caixinhas para os fósforos e retornava para casa às 17h30. Aparecida contou que, depois de um ano de trabalho, seus proventos passaram para um salário-mínimo e que só deixou a indústria em que trabalhou por três anos e sete meses para receber o pequeno fundo para o casamento. Em 27 de janeiro de 1973, aos 17 anos, ela casou-se com Aducio, que desempenhava a profissão de torneiro mecânico. Aparecida deixou sua condição de operária para tornar-se a esposa de operário.
Estudando as donas de casa das operárias no espaço parisiense no século XIX, Perrot (1998) explica que essas mulheres têm muitos poderes que são viabilizados pelas funções cotidianas que desempenham. Dentre essas funções, Perrot (1998) ressalta: dar à luz e criar os filhos; a manutenção da família e os trabalhos domésticos; e o esforço em proporcionar à família a unidade econômica imprescindível nas camadas populares. Mesmo se tratando do Brasil no contexto do século XX, a perspetiva de Perrot (1998) pode ser observada na vida de Aparecida.
No que se refere a dar à luz e criar os filhos, Aparecida teve três filhas, função que exigiu movimentação pelo espaço urbano. Sobre a educação das crianças, disse que considerava que apenas ela deveria educá-las. Quanto à educação formal, contou que as meninas sempre estudaram em escolas públicas localizadas próximo à residência e que desde muito cedo começaram a ir e voltar sozinhas para casa. Quanto aos cuidados odontológicos e visitas a médicos das crianças, Aparecida narrou que utilizava o atendimento oferecido aos funcionários das indústrias. Em suas palavras, “sem carro, eu levava uma menina enrolada na coberta e minha irmã me ajudava a cuidar daquelas que não precisavam ir”. Com tom de orgulho, complementou: “nunca meu marido precisou perder o dia de trabalho para levar as filhas ao médico”. Além dos cuidados com suas crianças, ela relatou que administrava todos os médicos de sua mãe e de seu irmão, uma vez que suas irmãs consideravam que ela era “desinibida e que tinha o tempo mais flexível, pois seu marido ficava o dia todo fora”. Se a rotina de seu esposo era ficar fechado em uma fábrica, o cotidiano de Aparecida, ligado às funções com suas filhas, passava-se, em boa parte, nas ruas da cidade, o que revela todo um poder de administração do tempo e do espaço percorrido.
A manutenção da família e os trabalhos domésticos também exigiam de Aparecida idas e vindas, tempo e trabalho árduo. De acordo com Perrot (1998), esse trabalho não contabilizado e não remunerado da dona de casa envolve as atividades ligadas à alimentação, à conservação da casa e da roupa, ao transporte da água etc. Sobre essa função, Aparecida narrou que no início do seu casamento moravam em uma casa de duas peças, mesmo assim, para ela, “encerar a casa e passar a palha de aço com o pé era horrível, e depois ainda tinha que passar escovão para lustrar o chão”. A falta de água encanada dificultava o serviço. Em suas palavras: “para lavar a roupa, era tudo na mão; tirava a água com balde; não existia água sanitária; para tirar as manchas das roupas, era preciso quarar: você esfregava com água e sabão de pedra, depois colocava na grama, deixava tomar um sol, molhava, depois levava para o tanque novamente”. Ferro de passar roupa, Aparecida teve desde os primeiros dias de casa, eletrodoméstico que servia para passar tudo que, com muita dificuldade, era lavado. Outros eletrodomésticos demoraram mais tempo para serem adquiridos. A geladeira foi comprada somente após dois anos de casamento e a máquina de lavar roupas só veio a facilitar sua vida 17 anos mais tarde. Tais funções desempenhadas pela dona de casa Aparecida revelam seu poder de lidar com as adversidades e dificuldades de deveres pesados a ela atribuídos para serem conduzidos.
Também era custoso equilibrar as despesas e proporcionar a unidade econômica da família. Michelle Perrot (1998) explica que intuindo economizar para dias difíceis ou para adquirir algo desejado, as donas de casa desenvolveram uma grande engenhosidade para encontrar recursos complementares e por preços mais acessíveis, nos mais variados locais e comércios da cidade e na maneira de desenvolver as atividades ligadas à casa. Essa destreza foi narrada por Aparecida.
Ela contou que procurava economizar desde a compra das mercadorias ao preparo das refeições. Durante anos, mesmo depois de ter suas filhas, ela comprava os produtos “sempre do mais barato” e fazia as compras de mercado para o mês inteiro, a fim de evitar ter gastos extras. Para manter-se no apertado orçamento, “era feito apenas um pedaço de carne para cada um” e as frutas e verduras eram as da estação e que estavam disponíveis no quintal. A economia era igualmente feita até na compra de cigarro para o marido. Ela sabia que, se comprasse aos maços, o preço das carteiras diminuíam. Foi por meio de muita economia que a família conseguiu passar de uma casa com duas peças para uma residência com mais conforto.
Mas, na direção do orçamento da família, Aparecida tinha um fato em seu favor. Ela contou que, desde o início do casamento, sempre geriu todo o salário do marido e que tinha liberdade para comprar o que quisesse. Michelle Perrot (1998) explica que, enquanto as mulheres dos extratos mais elevados recebiam apenas o valor para as despesas mensais, as donas de casa da classe operária conquistaram o direito de receber o salário de seus maridos. Essa conquista gerava encargos e privações, mas, satisfeita, Aparecida contou que “comprava até o cigarro para ele e, meu marido, nunca perguntou onde eu tinha gastado o dinheiro. Era um acordo nosso”. As atitudes de Aparecida demonstram a independência que ela possuía para gerir a renda da família.
Para complementar a renda familiar, desenvolvia trabalhos extras dentro do próprio domicílio. Aparecida contou que vendia, para conhecidas, os panos de prato que pintava à mão e as peças que confeccionava em crochê, como bolsas de corda e tapetes. Quando seu marido ficou desempregado, o trabalho foi intensificado na costura. Nesse período, ela montou uma minifábrica em sua casa, contratou mais duas auxiliares de costura e passava boa parte do tempo costurando e revendendo seus produtos em feiras e exposições programadas. Ela conta que foi a atividade de costura que a ajudou a manter a família durante o tempo de crise.
Atualmente, Aparecida costura belos vestidos para suas filhas e pijamas para seus netos. Apesar de todas as dificuldades e de ter brigado muito com seu esposo por conta das visitas a bares, diz que hoje vivem em paz numa chácara. Em suas palavras: “hoje eu moro num paraíso. Graças a Deus, eu venci tudo! Penso comigo que não tenho nada a me arrepender ou qualquer coisa que tivesse feito diferente! Com isso me sinto muito bem”.
A história de Aparecida, que brevemente foi esboçada, representa um pouco do cotidiano de várias mulheres que trabalham arduamente de forma invisibilizada nos lares. Elas desenvolvem atividades essenciais, entretanto, quase sempre desvalorizadas. Por esse motivo, essas donas de casa costumam sentir que suas vidas nada possuem de interessante para ser narrado. No entendimento de Michelle Perrot, é necessário trazer a representação dessa dona de casa popular “ativa e resistente, guardiã das subsistências, administradora do orçamento familiar” (PERROT, 1988, p. 181) e que nada têm de submissas. Mulheres com poderes cotidianos dignos de serem estudados e rememorados.
Para saber mais:
- PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 1988.
Agradecemos à Aparecida Ferreira Martins, pela entrevista concedida e pela cessão da foto que ilustra esta coluna.
Alexandra F. M. Ribeiro é doutoranda e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais e Alboni. M. D. P. Vieira é doutora e mestre em Educação – Linha de Pesquisa História, Memória e Políticas Educacionais.
Parabéns a dona Aparecida pela suas conquistas, é sempre muito bom ouvir história de superação. Gratidão por compartilhar.
História muito boa????????
Cada pessoa tem consigo muitas histórias!
Obrigada por sua contribuição!
Belíssima história. Mulheres como Aparecida moveram o mundo. Comovente a dedicação ao lar e o amor ativo pela família. Foi meu pai quem sempre trabalhou para o sustento da minha família, mas sem a dedicação e administração de minha mãe, não teríamos obtido o conforto e a estabilidade tão difíceis naquela época. Parabéns pela coluna de valorização das mulheres, em seus mais diversos universos.
Reconhecimento merecido!