Fevereiro sem Carnaval: O Brasil de cabeça para baixo

Sociedade brasileira, tão rica em leis e decretos, assiste a um “carnaval político” o ano inteiro, deixando o povo cada vez mais desassistido

Carlos Mariano Filho
No fim da década de 1970, o antropólogo Roberto da Matta, lançou “Carnavais, Malandros e Heróis”, primeiro livro que se debruçava sobre o dilema do carnaval na sociedade brasileira. E uma das lições deixadas pela obra de Da Matta é que a intelectualidade brasileira deve estar mais atenta às relações sociais praticadas no espaço social do mundo do carnaval. Da Matta nos ensinou no seu clássico que os “malandros” do carnaval, durante o processo da festa e no próprio ritual carnavalesco, enfrentam e renovam o tempo da rotina do dia a dia, dando-nos, assim, uma nova realidade sociopolítica cujos novos personagens surgem e negociam novas formas de viver, criando uma realidade mais aberta e surpreendente. Um sopro de vida, criando brechas no insistente tempo cíclico normativo das leis do Estado.
A sociedade brasileira, tão rica em leis e decretos, assiste a um “carnaval político” o ano inteiro, deixando o povo cada vez mais desassistido. Neste ano, em virtude da pandemia da Covid-19, a situação do povo pobre fica ainda mais desesperadora e sem alento, vítima também do desgoverno do inominável, que com sua necropolítica escolhe quem vai viver ou morrer.
O nosso querido Carnaval, que traria um sopro de alento, uma folga à tortura diária, não haverá. A nossa chance de todos os anos, de lotarmos as ruas para debocharmos e protestarmos, contra tudo e contra a todos, fazendo uma catarse social coletiva, foi cancelada. Ainda aprendendo com os ensinamentos de Da Matta, pensando o Carnaval como um momento ímpar de inversão da realidade, quando nós temos quatro dias para sorrir e zombar de quem nos impede de sorrir o ano todo, os inimigos invisíveis do mercado e os de carne e osso de Brasília, ficamos apenas com o Carnaval dos malandros do Planalto.
Imaginar o Brasil sem seu Carnaval é deixar esse país extraordinário ainda mais de cabeça para baixo. O Carnaval nos mostrou em séculos de existência que ele está longe de ser o ópio do povo, como pensavam alguns intelectuais de esquerda na década de 1970. “Carnavais, Malandros e Heróis” nos mostrou outra faceta do mundo social brasileiro. A faceta da rua, local onde se realiza a inversão carnavalesca. Nesse palco nasce todo ano outros brasis imprevisíveis, com paixões, protestos que deixam o ambíguo como instrumento de vida. Esse Brasil da rua vem através do rito se opor ao Brasil da casa. A casa onde nasceu o conservadorismo patriarcal, machista e hierárquico.
É o contraditório dessa sociedade proveniente do lar dos bens nascidos, que o Carnaval da rua vem subverter todos os anos, com seus blocos, bate-bolas e as nossas escolas de samba. Num ano que não poderemos viver o Carnaval, estaremos momentaneamente mortos. Mas, como dizia Mikhail Bakhtin: “o carnaval é a segunda vida do povo” e como tal renascerá em 2022 de uma longa quarta-feira de cinzas para continuar sendo o avesso da monotonia e da ordem.
 
Carlos Mariano Filho, mais conhecido por professor Mariano, é historiador, professor de História, Sociologia e Filosofia da Rede Pública do Rio de Janeiro. Pesquisador de escola de samba desde 2000, sua primeira lembrança de encantamento do carnaval foi, ao ver na casa da sua tia Ana (uma espécie de camarim de desfile de carnaval), o ritual de preparação das baianas da Vila Isabel, com suas saias rodadas, miçangas e devoção à arte de rodar
 
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