Em uma nova série de artigos, a coluna “Papo de Bamba” analisa as escolas de samba curitibanas e sua participação no carnaval da cidade
Carlos Mariano Filho
Volto nesta coluna a debruçar-me na memória das escolas de samba de Curitiba. Na primeira vez que o fiz, foi em ocasião do primeiro artigo da “Papo de Bamba”, quando relatei a história da primeira escola de samba de Curitiba: a Colorado, retratada brilhantemente no livro do pesquisador João Carlos de Freitas – “Colorado: A primeira escola de samba de Curitiba”.
Nesta nova série de artigos, entretanto, estarei alargando meu olhar de análise sobre as escolas de samba curitibanas e sua participação no carnaval da cidade. Me atentarei ao período de 1946 a 1971, em que surgem as escolas de samba, suas negociações com as outras agremiações carnavalescas, superando os obstáculos do preconceito, e sua afirmação na festa de momo.
Como já foi falado, a Colorado da extinta Vila Tassi foi a primeira escola de samba da capital paranaense e trouxe duas peculiaridades que marcam sua identidade. A primeira é que a Colorado é a única que se forjou a partir da ideia de ser uma escola de samba de verdade, aos moldes das que já existiam no carnaval carioca, além de ter na formação de seus contingentes de foliões uma maioria étnica negra. A segunda peculiaridade da Colorado era a sua sonoridade. Como a escola era formada na sua grande maioria pelo povo preto, eles trouxeram como novidade e inovação para o carnaval curitibano o samba ao estilo dos bambas do Rio de Janeiro.
O espaço do carnaval nos ajuda também a enxergar e a entender melhor os mecanismos de funcionamento social da cidade. O surgimento do Colorado em 1946 vai para além do contexto carnavalesco, revela a história do forte preconceito social e racial existente na história da cidade. Existia um apartheid social que escondia o negro e tentava impedi-lo de participar e pertencer à vida sociocultural de Curitiba. A comunidade negra existia de fato, mas era invisível aos olhos das elites curitibanas. A partir da criação da escola de samba Colorado e de sua participação no carnaval de rua, que nesse período acontecia na Rua XV de Novembro, o povo preto de Curitiba passou a ser visto na maior festa popular da cidade e, mais do que isso: trazendo o samba carioca, a improvisação e a criatividade tornaram-se o centro das atenções da folia de momo, a ponto de alguns blocos do carnaval de rua curitibano na década de 1940 virarem escolas de samba. Assim, passaram a praticar também o samba carioca que havia sido trazido pelos negros da Vila Tassi.
Antes da chegada dos negros no carnaval da Rua XV de Novembro, a folia curitibana era dominada pelos clubes e blocos da classe média descendente de europeus. Era lógico, então, que o carnaval praticado na rua fosse semelhante ao praticado no velho continente. Lógico que com improvisações criadas pela criatividade do nosso povo. Os clubes, as grandes sociedades, blocos de rua e os desfiles de corsos (desfile de foliões em carro aberto) eram os personagens do carnaval branco de Curitiba.
O carnaval de rua nasceu a partir da ação do bloco carnavalesco Asas da Alegria. Em 1939, um grupo de foliões alegres, que pertencia ao 5º regimento da aeronáutica, deixou a farda no armário, lançou a mão num farto copo de cerveja e foi para a Rua XV cair nos braços de Momo. Outros blocos, surgiram na esteira do Asas, como a galera dos Vira Latas, Sputnik na Folia, Amigos da Onça, Bafo Quente e Kananga do Japão.
O primeiro concurso de carnaval de rua de Curitiba foi realizado em 1942, por iniciativa do jornal Gazeta do Povo – aliás, vale ressaltar que, tanto em Curitiba quanto em todo canto do Brasil, foi muito importante o papel da imprensa não só em promover o carnaval popular, mas também em participar dele criando concursos entre as agremiações carnavalescas. O vencedor do primeiro concurso de carnaval de rua foi o pioneiro Asas da Folia, que conquistou o troféu “rodo”, concedido por uma fábrica de lança perfume da cidade.
Os clubes de grã-finos formavam a base desse carnaval excludente, mas popular. O negro continuava isolado da participação da festa, invisível, escondido, ou era apenas um espectador, pois o que se tinha de festa popular era monopolizado pelos brancos descendentes de imigrantes europeus. Essas sociedades do bom costume e bem-nascidas tinham suas sedes nos clubes sociais da cidade. São exemplos dessas prestigiadas agremiações o Clube Curitibano, o Clube Sociedade Thalia, o Clube Sociedade 14 de Janeiro e o Clube dos Democráticos.
Vale destacar também que antes da chegada das escolas de samba, existiu o Grêmio Sociedade Violetas, uma inovação para época. A agremiação e associação exclusivamente feminina surgiu no seio do conservador Clube Curitibano. As moças “transviadas” não se reuniam apenas no carnaval, mas também, durante o ano faziam um trabalho artístico de recitais que mostravam a força, a criatividade e a ousadia da mulher curitibana dos anos de 1940.
Esse fenômeno cultural da Sociedade Violetas nos mostra que nem sempre as grandes estruturas hegemônicas exercem seu domínio de forma totalizante. Na convivência social entre as classes, os grupos excluídos e discriminados estão sempre criando brechas no convívio para serem reconhecidos e, assim, em algum momento pertencer ao sistema social que o exclui. E, esse caso das mulheres curitibanas, do Grêmio das Violetas, apesar de serem da alta sociedade, é um belo exemplo.
Nessa primeira fase dos desfiles das escolas de samba de Curitiba, além da Colorado, mais três escolas se destacariam: Embaixadores da Alegria, oriundos do bloco Cavadinhas do Amor, Não Agite, escola de samba oriunda do bloco boêmio do mesmo nome e que tinha como base de seus foliões, os torcedores do Coritiba, e a escola de samba D. Pedro II, oriunda do bloco Asas da Alegria. Essas três escolas de samba, ao lado da Colorado, vão ser as grandes expoentes de período inicial e de afirmação das escolas de samba de Curitiba.
O que é interessante pontuar é que, nesse momento, os desfiles das escolas de samba ainda não eram nos moldes que assistimos hoje, com desfiles que obrigatoriamente têm que vir contando e cantando um determinado enredo com seu respectivo tema. As escolas de Curitiba até a décadas de 1960 desfilavam com sambas de temas livres ou cantando os sambas das escolas de samba e de sambistas consagrados. Quem começa a quebrar com esse modelo é a Colorado, que nasceu com a ideia fixa de ser escola de samba no estilo do carnaval carioca. Maé da Cuíca, com sua turma de sambistas da Vila Tassi, foi o pioneiro em fazer sambas enredo para desfiles e exaltação da Colorado.
Embaixadores da Alegria, Não Agite e D. Pedro II foram escolas de samba que nasceram de uma tradição dos blocos de classe média nascidas dos clubes que tocavam as chamadas marchinhas orquestradas. Com o impacto do samba negro trazido pela Colorado, essas três agremiações viraram escolas de samba e passaram a fazer também a batucada e o samba negro da galera da Vila Tassi. Mas, o apartheid social que existia na vida real entre os integrantes da Colorado e as demais escolas rivais também se refletia na disputa da pista. A Colorado, apesar de fazer e ter o melhor samba e sambistas da cidade, na maioria das vezes não levava o título de campeão do carnaval da cidade. O título ficava para as rivais de classe média com seus carnavais mais luxuosos, agradando os jurados na maioria brancos e intelectuais que davam mais valor à plástica do que ao samba no pé. Mas, se por um lado a Colorado não era consagrada nos quesitos técnicos e de plásticas, seu samba preto e, principalmente, a batida da sua bateria ganhava a consagração popular, se tornando referência do carnaval curitibano e brasileiro.
Já no início da década de 1970, a Rua XV de Novembro irá sofrer uma intervenção urbanística que mudará a história sociocultural da cidade. O então prefeito Jaime Lerner transformou a rua em um calçadão para os pedestres, algo inédito no país. Tal obra também repercutiu no carnaval de rua, pois o calçadão da XV se tornou inviável para a prática dos desfiles. Contudo, a partir de 1971, eles foram transferidos para a Rua Marechal Deodoro. Começa, a partir daí, o conhecido período de apogeu do carnaval curitibano, que tem na afirmação do samba negro trazido pelo Colorado um novo modelo e o carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro como inspiração. Essa história fica para o próximo Papo de Bamba. Até lá!
Bibliografia
- Viacava, Vanessa Maria – Samba Quente, Asfalto Frio: Uma Etnografia Entre as Escolas de Samba de Curitiba. Dissertação apresentada na Universidade Federal do Paraná para o título de Mestre em Antropologia. 2010.
- Freitas, João Carlos. Colorado – A Primeira Escola de Samba de Curitiba. Curitiba: Edição do Autor, 2009.
- Cavalcanti, Maria Laura – Carnaval, Ritual e Arte. Rio de Janeiro: Editora Letras, 2015.
Carlos Mariano Filho, mais conhecido por professor Mariano, é historiador, professor de História, Sociologia e Filosofia da Rede Pública do Rio de Janeiro. Pesquisador de escola de samba desde 2000, sua primeira lembrança de encantamento do carnaval foi, ao ver na casa da sua tia Ana (uma espécie de camarim de desfile de carnaval), o ritual de preparação das baianas da Vila Isabel, com suas saias rodadas, miçangas e devoção à arte de rodar
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