A Revolução dos Bichos, se lido honestamente, pode acabar nos levando para bem mais perto do que gostaríamos: nossa família, nossa igreja, nosso trabalho, nosso país
Por Letícia Lopes Ferreira
Um porco esperto e corrupto, uma ovelha estúpida, um cavalo de coração grande e intelecto pequeno, um burro cínico e omisso… Bem poderia haver um desses testes de Internet para a gente descobrir qual bicho seria em A Revolução dos Bichos (Animal Farm, 1945), de George Orwell (pseudônimo do escritor e jornalista inglês Eric Arthur Blair), cuja morte completa 69 anos neste mês. Durante a leitura, porém, não precisamos de nenhum teste para encontrar e reconhecer nos animais, como em um espelho, nossa própria natureza – humana –, como ocorre nas fábulas e foi intenção do autor, conhecido também por outras obras como o famoso 1984. Escrito como denúncia do stalinismo, A Revolução dos Bichos, se lido honestamente, pode acabar nos levando para bem mais perto do que gostaríamos: nossa família, nossa igreja, nosso trabalho, nosso país. Os jogos de poder e os tiranos, os temos em todos os lugares e épocas, eles estão entre nós. Por isso, ao escolher o primeiro livro para comentar neste blog, decidi voltar ao que se tornou um clássico tão comentado, analisado e esmiuçado, lançado há 74 anos. Tem versão em filme, quadrinhos e game, e foi noticiado que a Netflix está fazendo a própria versão.
Orwell declarou, em um prefácio à tradução ucraniana de 1947 (publicado pela recente edição da Cia. das Letras, 2018): “Não quero comentar a obra; se ela não falar por si mesma, é porque fracassou”. E depois disso, venho eu e me atrevo a comentar? Atrevo-me. Aliás, vou me atrever aqui a comentar sugerir, celebrar, etc. outras obras que estão à disposição nas unidades da Biblioteca Pública do Paraná. Mas não me atrevo, nem poderia, a tentar fechar assunto sobre qualquer livro ou sobre literatura ou A Revolução dos Bichos. A intenção é abrir e reabrir espaço, discussões, opiniões, leituras.
E atrevo-me a tocar de novo em A Revolução dos Bichos porque o livro é hoje leitura ou releitura necessária e urgente, como propõe o Clube de Leituras Urgentes, organizado pela Fundação Cultural de Curitiba (https://www.facebook.com/events/1248388098649687/), que convida a conversar sobre o livro no dia 31 de janeiro. Ainda que Orwell o tenha escrito na intenção de denunciar o stalinismo à Europa Ocidental, na década de 1940, nada impede que enxerguemos nessa alegoria sintomas de outras tiranias bem atuais. A tirania não é tão imaginativa e se repete. Apesar disso, e mesmo depois de tantas ditaduras, guerras e revoluções, ainda é difícil reconhecer os tiranos, rejeitá-los e detê-los antes que espalhem o desespero e a morte. Mesmo depois de todos os livros, filmes e canções, ainda é difícil.
Por mais clichê que isso possa parecer, esse texto nos coloca de frente com a nossa realidade: manipulação das massas com fake news ou distorção da informação e da História, manutenção dos privilégios e da corrupção da elite política e financeira – seja ela de que partido for ou mesmo sem partido –, culto à personalidade do líder, uso da violência pelo Estado como forma de controle, omissão da maioria frente a injustiças e abusos, fabricação de um inimigo em comum e tantas outras calamidades que estamos enfrentando. Não importa de qual ideologia é o totalitarismo ou a ditadura – toda ditadura é nefasta –, e temos visto como nem mesmo é preciso que quem governa necessariamente recorra à ditadura para ter o mesmo poder e veneno que tinham os porcos da granja de Orwell. Hoje é importante nos darmos conta que, como apontou o já falecido crítico literário Christopher Hitchens no posfácio também da edição do ano passado da Cia. das Letras, o ensaio “Repensando A Revolução dos Bichos (2016)”: “O que o romance na verdade nos diz, com seus amenos empréstimos de Swift e Voltaire, é que aqueles que renunciam à liberdade em troca de promessas de segurança acabarão sem uma nem outra. Essa é uma lição que transcende o momento em que foi escrita”.
Direto, interessante e atual
A prosa objetiva de Orwell, sem tentativas de fazer “alta” literatura, não faz também mistério na associação da revolução dos bichos no interior da Inglaterra com uma revolução política e popular que descamba em ditadura. Quem conhece a revolução russa de outubro de 1917 ou sabe das intenções do autor tem ainda mais referências para essa identificação. Nem a participação da igreja fica de fora. Essa obviedade é, para alguns, incompleta e singela demais. Orwell foi acusado mesmo de ter transformado a revolução dos bichos – e o socialismo, nesse texto – em algo inútil. Não creio, já que o que os bichos farão depois de terminado o “conto de fadas rural”, como o autor chamava o livro, nós não sabemos. Não vejo o fim do texto como conclusivo.
Não há como falar nesse clássico sem falar em política e hoje são feitas novas leituras, por exemplo, como um alerta dos efeitos da ação do homem na natureza e no trato com os animais, o que não era um assunto em voga na época do lançamento. Orwell contou que passou seis anos pensando em como escrever essa história e que os detalhes concretos lhe ocorreram depois de ver um menino que montava um enorme cavalo de tiro fustigá-lo com chicotadas cada vez que o animal tentava sair do caminho. Pensou que se aqueles animais passassem a ter consciência da própria força, os humanos não teriam poder sobre eles: “os animais são explorados pelos homens de modo muito semelhante à maneira como o proletariado é explorado pelos ricos”, disse ele no prefácio à edição ucraniana. Veja este trecho do início de A Revolução dos Bichos:
“O Homem é a única criatura que consome sem produzir. Não dá leite, não põe ovos, é fraco demais para puxar o arado, não corre o suficiente para alcançar uma lebre. Mesmo assim, é o senhor de todos os animais. Põe-nos a trabalhar, dá-nos de volta o mínimo para evitar a inanição e fica com o restante. Nosso trabalho amanha o solo, nosso estrume o fertiliza e, no entanto, nenhum de nós possui mais do que a própria pele. As vacas, que aqui vejo à minha frente, quantos litros de leite terão produzido este ano? E que aconteceu a esse leite, que deveria estar alimentando robustos bezerrinhos? Desceu pela garganta dos nossos inimigos. E as galinhas, quantos ovos puseram este ano, e quantos se transformaram em pintinhos? Os restantes foram para o mercado, fazer dinheiro para Jones e seus homens.”
Há livros que a gente lê, sim, mesmo ficção, por obrigação e com certo enfado, mas esse não é um deles. Relativamente curto, foi deliberadamente escrito para uma leitura fluida e acessível, sem ser, é claro, um texto simplório ou mal-acabado. A tradução para o português brasileiro, apesar de uma ou outra palavra menos popular atualmente, dada a época em que o livro foi traduzido (por exemplo: “amanha o solo”), acompanha a objetividade do texto em inglês. Apesar de toda tradução, a princípio, ser imperfeita, como disse Schopenhauer, e essa também, ela alcança as intenções e o impacto do original. Mas quem sabe com que espírito o tradutor, Heitor Aquino Ferreira, a realizou: entre outras atribuições nos bastidores da ditatura militar no Brasil, ele foi secretário de Ernesto Geisel – de 1971 a 1979 – e de Golbery do Couto e Silva – de 1964 a 1967. Essa é outra história sobre a qual é interessante procurar saber mais. E se a alguém conhecer outra tradução de A Revolução dos Bichos para o português brasileiro, por favor, avise.
A Revolução dos Bichos está disponível para empréstimo também nas Casas de Leitura da Prefeitura de Curitiba.
Letícia Lopes Ferreira é jornalista, mestre em Letras e ama livros e filmes.
Faz um texto sobre Lima Barreto! 🙂
No final do livro, os porcos tomam uísque com os proprietários humanos de fazendas vizinhas. No filme, tem uma perestroika com a autocrítica dos porcos e volta dos humanos em harmonia. Nada a ver! Final porco!